domingo, 6 de fevereiro de 2011

Prosa Caótica II, Cad 3, 1988/1990


PROSA CAÓTICA II, O Duro Recomeço, Caderno III (1988/1990)
1

Um vento solto açoita a catinga. A expressão “vento solto” é usada pelos sertanejos para o vento que sopra na seca. É um vento forte e sem direção certa, quase sem interrupção, apenas abrandando, rodopiando em redemoinhos, inesperadamente, nas horas quentes. Às vezes entra casa à dentro o hálito de fornalha batendo portas e janelas. Vem do inferno, dizem.

Terminado o inverno, dedicam-se todos à colheita, todos têm para comer o produto das roças, mas persiste a preocupação com os preços do que necessitam comprar na cidade: querosene, sal, sabão, roupas ordinárias, minúsculas redes. Precisam também de trabalho, de um ganho extra, uma diária para atenuar a miséria.

Passei os festejos de São João na cidade. Voltei para a fazenda no São Pedro. O administrador fez uma fogueira votiva em frente à minha casa, e trouxe milho verde para assar com a palha, como é o costume. Moradores da vizinhança chegaram para conversar. Participei de um jogo de sueca que organizei, pela impossibilidade de sustentarmos um diálogo qualquer. As pessoas da cidade, com nível médio de renda e de cultura, sentir-se-ão isoladas neste mundo como ele é.
Sem outro atrativo para a data festiva, as crianças pediram a presença de um adulto para “contar histórias”. Trata-se de um costume antigo, referenciado por Câmara Cascudo, e que, no meu entendimento, carrega todo o peso de um sonho de libertação. Não foi possível atender-lhes o hábito guardado na memória, eventual e esporadicamente estimulada. Desapareceram no Nordeste onde vivo os contadores de história.
2
Durante o período – quase noventa dias – em que parei a redação destas notas, refleti sobre a minha atividade de caracterizado amadorismo literário, traduzido não somente no ato de escrever, mas na discussão e abordagem de temas que o pro-fissionalismo – alienado embora – oferece com atrativos pseudocientíficos, calcados em estudos sistemáticos. A minha prosa ressente-se de leituras apressadas da adolescência, e perde-se em reminiscências que a memória faculta desordenadamente. Mesmo assim, longe de constituir-se em exemplo, esgota-se desatualizada.
3
Houve uma época em que os escritores brasileiros eram lidos quase exclusivamente pelos confrades. A obra literária era facilmente aceita e elogiada, pela necessidade do retorno do elogio, da distribuição de premiações, como esclarece Nelson W. Sodré no seu EM DEFESA DA CULTURA.
O desenvolvimento das relações capitalistas e industriais refletiu na atividade literária, o varejo da obra de encomenda, desligada da evolução cultural do país. Se hoje temos um público leitor já formado, este é muitas vezes obrigado a consumir best-sellers duvidosos, pela divulgação e pelo preço acessível, e que nada têm com a vida brasileira. Existe, é verdade, uma escassa publicação de autores nacionais e estrangeiros, em literatura e ciência e vendidos a preços proibitivos, perdidos nas bibliotecas de algumas instituições, quase inacessíveis nas li-vrarias.
Defende-se a classe dirigente. O conteúdo revolucionário da arte literária e das ciências, como partes da teoria geral do conhecimento, refletindo a realidade dialética do desenvolvimento da sociedade e da natureza, constituem uma permanente ameaça à sonhada imutabilidade de estruturas de-cadentes, dos privilégios burgueses. Outro aspecto a destacar na posição dos intelectuais com a eficiência socialista e as crises capitalistas é a especialização mesquinha, patrocinada. Assim os trabalhadores intelectuais, fechados em círculos estreitos, pro-duzem uma caricatura de arte, cumprem impo-sições burocráticas e de mercado. Modismos são confundidos com novas formas literárias, fruto aleatório do desenvolvimento cultural.
4
A propriedade e suas exigências começaram a tomar o meu tempo. No longo intervalo entre estas anotações e as que reuni em outro caderno, desviei-me do meu projeto de leituras. As coisas na fazenda não andam mal, porém, o administrador, para agir como outros o fazem, costuma procurar-me para dar conta de serviços contratados, colheita, estado do rebanho. Nada que produza consideráveis rendimentos financeiros. Vivo de uma aposentadoria no serviço público e procuro tornar-lhes a vida menos pesada. Recebo-o com poucas palavras, sem muito interesse, pois sei que tudo está a contento. Ele tenta mostrar o seu desempenho para assegurar a boa situação que desfruta em relação aos demais. Sou tomado de profunda emoção diante de sua figura rude, os gestos acanhados, submisso.
Pesa na consciência do trabalhador rural nordestino o desamparo ancestral, a indefesa condição de servo de gleba, a distinção marginal em face da lei, o que é uma dura realidade. Vive a vida possível, vislumbrando apenas em rápidas reflexões, as mudanças que poderão acontecer. Sabe da existência de sindicatos de trabalhadores, de direitos assegurados, mas pouco reclama.
Defende-se da grosseira exploração na contratação de empreitadas, esperando que um erro na avaliação da tarefa, lhe dê condições de melhor remuneração pelo trabalho duramente executado. Vejo na preferência pelo contrato de empreitada, uma forma do trabalhador esquivar-se à exploração permanente, que o submete à condições indiscutíveis. Assim eles entendem, tenho certeza.
No ambiente adormecido da fazenda começo a sentir-me isolado. Percebo que me olham penalizados com a minha solidão. Extraordinárias criaturas que do fundo de uma vida miserável, arrancam ainda do íntimo um sentimento de compassiva solidariedade.
5
Fiz algumas viagens à Sousa e terminei envolvido nos assuntos da política local. Participei de reuniões para escolha de candidatos nas eleições de novembro. Não quero retornar à vida passada. Velhos amigos que me ajudaram, necessitam agora da minha experiência na política partidária, do apoio para os seus candidatos. Não consigo furta-me aos apelos. As questões locais e as atividades na fazenda têm muita força, a esta altura da vida, dedicada quase inteiramente à luta pelo poder e pelo dinheiro.
6
Sobre a política e a administração pública, alguns trechos de um comentário sobre um livro atual, ainda não publicado em tradução no Brasil. Li-o no INTERNATIONAL HERALD TRIBUNE (1982), a bordo de um Jumbo da Air France, entre Paris e Roma, lembrando o que fazia o conterrâneo Assis Chateaubriand. Na impossibilidade de uma tradução “literária”, sem outras pretensões, vai o texto original:
THE FUTURE OF INTELECTUALS AND THE RISE OF THE NEW CLASS, by Alwin W. Gouldner, reviewed by John Leonard.
“What is the ‘New Class’ that is taking over? Acoarding to A.W.G., Max Weber Professor of Social Theory at Washington University in St. Louis, the New Class consists of scientists, educators, managers, comunicators, publicity agents, maybe literary critics and other ‘professionals’ whose business it is to run culture. Culture – knowledge and skills – is in fact the capital of the New Class.
What does the New Class want? Gouldner is specific: more money and more power. ‘The New Class’, he says, ‘believes its high culture represents the greatest achievment of the human race, the deepest ancient wisdom and the most advanced modern scientific knowledge. It believes that these contribute to the welfare and whealth of the race, and they should reveive correspondingly greater rewards.’
He goes on: ‘The New Class believes that the world should be governed by those possessing superior competence, wisdom and science – that is, themselves. The Platonic Complex, the dream of the philosopher king with which western philosophy begins, is the depest wish-fulfilling fantasy of the New Class. But they look around and see that the men who employ them do not begin to understand the simpliest aspect of their techinical epecialities, and the politicians who rule them are, in Edmund Wilson’s words, unique having mannaged to be corrupt, uncultivated all at once.
Have they these secular priests and treasonous clerks, some desadvantages? Yes. They are divided into two camps; the intellectuals, who are roamantic moralists, predisposed to utopianisnm, and the tecnical intelligentsia, who are amoral puzlle solvers and mnagement types. The intellectuals go on about what is ‘good’, the technical inteligentsia want to be left alone. And the fact they are all elitists and careerists makes them hather unsymoathetic to the rest of us, who must muddle along in our own inferiority complexes.”
Não li o livro de Gouldner, apenas a recensão da qual transcrevi os trechos acima. Essa conduta do intelectual em face da sociedade, decorre da contradição pessoal entre a sua vida burguesa e a inevitável condição do trabalhador assalariado, embora “não integrado ao modo de produção capitalista.”
No avançado estágio de progresso técnico e científico atingido pelos EUA, os intelectuais, vencido o antagonismo que se revela em indivíduos isolados, têm um papel fundamental no processo de desenvolvimento da luta para o socialismo, na linha de frente da classe operária. Assim Marshall Berman, Edmund Wilson, John dos Passos e tantos corajosos humanistas americanos.
Luckács afirma que “quanto mais complexos e complicados são os problemas, tanto maior é o papel que a literatura deve desenvolver na evolução social, na preparação ideológica das grandes crises.
7
Realizo-me literariamente redigindo estas notas. Impressões de leituras que não fazem de mim um crítico. Escrevo poesia e prosa. Faltam-me a força criadora do artista e os conhecimentos teóricos do crítico. Insisto, não desisto. O que fazer?
Houve um tempo na minha vida, dedicado à leitura. Uma espécie de fuga do meu mundo, que o achava prosaico demais, perdido na obssessão dos grandes dramas, como se estes somente existissem na ficção literária.
Quase nunca me satisfaz o que escrevo. Relido e texto surpreende-me a deficiência no uso da língua: repetição de palavras, dúvidas relativas à gramática.
No plano das idéias e da criação, receio sempre estar repetindo coisas alheias, decalque de apressadas leituras, ou identidade de pensamento com escritores consagrados e preferidos.

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