sábado, 26 de fevereiro de 2011

MINHA MEMÓRIA SERTANEJA
A cena repetia-se quase todos os dias. Deitado no cimento liso, frio, eu me mexia para um lado e para outro, dissimuladamente olhava para as telhas, as mais altas já na cumeeira da casa. Receava ser considerado uma presença incômoda. Com o rabo do olho observava o meu pai de óculos, sentado na cadeira de balanço, de palhinha, o que acontecia após o almoço quando ele fumava um charuto, lia ou passava os olhos em livros, jornais, revistas, papéis. Ele sentia a minha presença. Escutavam-se vozes e ruídos discretos dentro de casa, pisadas de pessoas e animais vinham da rua. Movia-me a curiosidade face ao seu comportamento estranho para mim. Evitava espirros, fungados, comuns em crianças ata-cadas pela poeira, pelos germes domésticos, o nariz escorrendo pela constipação.
Todos em casa sabiam que, para o meu pai, aquela era uma ocasião, um momento especial para a soneca, o recolhimento. O que me surpreendia, entretanto, era a instabilidade do seu temperamento, que eu constatava em casa e com os amigos. Ora sisudo, às vezes o olhar ameaçador, ora o bom humor extravasando alegria, em risadas, falando alto, batendo palmas, levantando os braços. Mas ele vivia feliz, pude avaliar mais tarde. E este hábito familiar fez nascer em mim o gosto pela leitura. Ali estava a fonte de sua vida, de toda a vida afinal: descobrir, conhecer, saber das coisas. Eu acreditava e estava certo. Acontece comigo. Vivemos em colônias. Nos organizamos e ganhamos experiências.
Perdidos o pequeno patrimônio de bens recebidos de heranças e amealhado no começo de sua vida, o serviço público acolhia o meu pai em situação salarial razoável, in-vejada por muitos, conseguida através do prestigio de sua família que militava politicamente no Estado. Mas refugiava-se nas leituras que o faziam ilustrado sem ser doutor. “Certos formados...” azedava discretamente, referindo-se a presenças obnubiladas na cena social. Era uma face do seu caráter: valorizava o saber, apesar de não ter chegado à universidade como outros parentes. Recriminava o seu concunhado Manoel ligado ao partido comunista. Presidente do aristocrático clube social (de dança, espetáculos, reu-niões) da cidade, com o seu piso de tábuas de madeira de tons velhos, mas rebrilhantes com a aplicação de cera de carnaúba, criou uma biblioteca que denominou “Humberto de Campos”, cuja estante de madeira e vidros com prateleiras e livros conheci.
Este mundo que vivemos não desaparece para mim e para todos. Pelo menos em curto prazo no processo civilizatório. Parece-me. Aí estão os sumérios, egípcios. Ignoro em profundidade teses espíritas ou científicas sobre outra forma de vida depois da morte do corpo, outra forma de existência da matéria, universos paralelos. A arte e a literatura, entretanto, o preservam − bem ou mal. A técnica, o estilo descritivo das paisagens, a expli-cação das conquistas, das tragédias, dos fastos da existência social. Tenho a minha memória despertada, renascendo na vida, nos sentimentos e circunstâncias em que ressurgem – uma tela, uma escultura, um texto. Revejo cenas esquecidas vividas ao longo de minha exis-tência, tipos amados, odiados, numa verdadeira comemoração no seu reencontro.
Do processo natural de nascimento, desenvolvimento e desaparecimento da ma-téria, dos seres vivos, cuida a ciência, cujas leis foram descobertas pelos homens – algo incontestável e comprovado concretamente. Fico a imaginar, contudo, nos costumes, nos mitos do mundo de minha infância, da minha juventude que sustentavam a sociedade, hoje ignorados ou esquecidos por muitos que os conheceram, viveram. Ali sentia a grandeza, o brilho da inteligência em revelá-los, preservá-los, revestidos em guerras, tragédias, vitórias, derrotas, amores, traições, no dia a dia do Artista Quando Jovem, do Quixote, das Vidas Secas, das Vinhas da Ira, do Grande Sertão Veredas, da Vida Severina, do Alienista, da Pedra do Reino, dos Condenados na Trilogia do Exílio, do Pensador, do Porteiro do Inferno, de Guernica, de Guerra e Paz, das Bandeirinhas, da Carmina Burana, do O Guarani, do Operário Em Construção, do adorável Mindlin lendo Casimiro de Abreu e Castro Alves – os gênios da espécie ou da raça, como queiram. Eis o que me coube conhecer e me basta. Até a linguagem de argot reconstruindo a vida para eternizá-la. E o seu caráter autobiográfico aceitam os filósofos da estética, os teóricos da arte. Afinal reza a legenda “Mateus primeiro os teus”. Verdade ou mentira? Esta a matéria épica, lírica, romanesca.
A História do Príncipe do Sangue do Vai e Volta, realmente é a verdadeira Bíblia Sertaneja Nordestina, tem todos os Livros do Velho e do Novo Testamento. Eterniza a Paraíba, o Sertão com os seus mitos e costumes. Estereotipados os personagens e os acontecimentos, o folhetim não arquiteta enredos. Eis o livro da minha história aventurosa, a minha biografia completa na saga sertaneja. Pensem e reflitam no que digo. Esta literatura não “tresanda imundícies”. Dela tirei a conclusão de que tudo será preservado, reconhe-cido, comentado − um revivescimento verdadeiro. Uma remissão compensatória, um lenitivo para a sensação de perda que nos assalta algumas vezes. Porque os jovens da civilização do automóvel, das bandas musicais de bailarinas e metais, das empresas, da salvação da alma a prazo em boletos bancários, pouco sabem de procissões, de pálios, do fantástico Pavão Misterioso, de feiticeiros e quizombeiros, de prelados, magistrados, cangaceiros, das solenes exéquias e pavorosos crimes, das brigas familiares, das ideologias em disputa. Mas o sertão continua vivo, presente, como o vi e todos o viram e verão. Enfim a pobreza enraizada e a nobreza burocrática. Produto de uma ontologia determinada historicamente.
Eu reunia às vezes muita gente na minha casa na fazenda. Nos dias santos em que ninguém trabalhava, e os observava. Rodadas de café e chá, bolo de caco e até servia cachaça evitando excessos. Emocionados uns falavam ou cantavam mesmo sentados, outros ficavam em pé, se contorciam, estufavam o peito, agitavam os braços, batiam com os pés, coçavam a cabeça, esboçavam gestos de ameaça, máscaras de terror numa admirável pantomima – a sua vida. Todos escutavam atentos os declamadores eventuais dos ro-mances, o que acontecia a propósito de um comentário ou alusão a um fato da vida local. Cansa referir: “Um índio velho vaqueiro... Foi Norberto da Palmeira/Ismael do Riachão/ Calixto do Pé da Serra/Félix da Demarcação/Benvenuto do Desterro/Zé Preto do Bo-queirão... Diga que mate uma vaca/leve queijo e rapadura/E vá esperar por nós/Na fazenda da Bravura/Diga que somos sessenta/ Leve jantar com fartura... Aí chegou-lhe as esporas/ O cavalo então partiu... Mas o boi se fez nos cascos/ E no campo se estendeu...O coronel Sizenando/tinha como devoção/Festejar todos os anos/A imagem de São João... O estilo do sertão:/o que não fizer fogueira/nas noites de São João/Fica odiado do povo/Tem fama de mau cristão...O cangaceiro sagaz/Não se confia em ninguém...Tive nos meus can-gaceiros/Um prejuízo danado/Primeiro foi Rio Preto/Segundo Pilão Deitado...” Gritos, palmas, estrondos. Eu também aplaudia entusiasmado.
Outros tratavam da valentia, da nobreza, da esperteza, dos sofrimentos do amor. Cansa repetir ainda: “Na província da Normandia... A duquesa de Borgonha... Alzira era uma condessa/Filha do Conde Aragão... Deus há de perdoar/Não há filho neste mundo/Para Deus desamparar... Daí seguiu para Roma... Um cabra matou meu pai/Meu pai há de ser vingado/Inda o cabra lá no inferno/Lá mesmo é esquartejado... Não há fardo mais pesado/Do que seja uma mulher/E nem há homem que tire/As manhas que ela tiver... O Cancão nunca armou laço/Que alguém pudesse sair... Depois de Cristo alguns anos/Existia um ancião... No reino da Pedra fina/Existia uma princesa... No dinheiro tem-se visto/Nobreza desconhecida/Meios que ga-nham questão/Ainda estando perdida/Honra por meio da infâmia/Glória mal adquirida... No tempo do carrancismo/Tempo em que os bichos falavam...Então o Duque Agripino/Levou Alzira a Bruxelas... Padre, juiz, escrivão/Não fazem falta a ninguém... O governo federal/Querendo remia o Norte/Porém cresceu o imposto/Foi mesmo que dar-lhe a morte... Menino quem é você?/Meu velho eu sou raceado com homem de inteligência/Homens que não estudavam/Porem tiveram ciência/Tiveram por mestre os livros/Nas aulas da Providência... índios mansos chamados caboclos-brabos...”. Respeitavam a palavra tomada, aguardavam a oportunidade para soltar a voz. Um de cada vez, a cada encontro.
Não receio afirmar que todos os sentimentos que levavam aos fatos da sociedade dos homens, em qualquer estágio econômico-científico, atravessando todas as literaturas e invenções, aí descobríamos no meu alpendre. Tão definitivas e diversas como os do muito falado e ilustrado Shakespeare e outros polígrafos ocidentais.
Termino. Viva o Brasil! Viva a Paraíba!
................... Inverno. 2011. Tudo cheio, sangrando em fevereiro ..................

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