domingo, 27 de fevereiro de 2011

"A rua árabe é hoje a vanguarda de todo o mundo"
A grande revolta árabe de 2011, com razões específicas em cada país, definitivamente não tem a ver com religião (como afirmaram Mubarak, Kadafi e Hamad), mas essencialmente com a inquietude da classe trabalhadora provocada pela crise global do capitalismo. O choque de civilizações, o fim da história, a islamofobia e outros conceitos estão mortos e enterrados. As pessoas querem seus direitos sociais e navegar pelas águas da democracia política e da democracia social. Neste sentido, a rua árabe é hoje a vanguarda de todo o mundo. Se os al-Khalifa da vida não compreenderem isso, vão cair. O artigo é de Pepe Escobar.
> LEIA MAIS | Internacional | 27/02/2011
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• Reginaldo Nasser: chegou a vez do coronel Kadafi?
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sábado, 26 de fevereiro de 2011

MINHA MEMÓRIA SERTANEJA
A cena repetia-se quase todos os dias. Deitado no cimento liso, frio, eu me mexia para um lado e para outro, dissimuladamente olhava para as telhas, as mais altas já na cumeeira da casa. Receava ser considerado uma presença incômoda. Com o rabo do olho observava o meu pai de óculos, sentado na cadeira de balanço, de palhinha, o que acontecia após o almoço quando ele fumava um charuto, lia ou passava os olhos em livros, jornais, revistas, papéis. Ele sentia a minha presença. Escutavam-se vozes e ruídos discretos dentro de casa, pisadas de pessoas e animais vinham da rua. Movia-me a curiosidade face ao seu comportamento estranho para mim. Evitava espirros, fungados, comuns em crianças ata-cadas pela poeira, pelos germes domésticos, o nariz escorrendo pela constipação.
Todos em casa sabiam que, para o meu pai, aquela era uma ocasião, um momento especial para a soneca, o recolhimento. O que me surpreendia, entretanto, era a instabilidade do seu temperamento, que eu constatava em casa e com os amigos. Ora sisudo, às vezes o olhar ameaçador, ora o bom humor extravasando alegria, em risadas, falando alto, batendo palmas, levantando os braços. Mas ele vivia feliz, pude avaliar mais tarde. E este hábito familiar fez nascer em mim o gosto pela leitura. Ali estava a fonte de sua vida, de toda a vida afinal: descobrir, conhecer, saber das coisas. Eu acreditava e estava certo. Acontece comigo. Vivemos em colônias. Nos organizamos e ganhamos experiências.
Perdidos o pequeno patrimônio de bens recebidos de heranças e amealhado no começo de sua vida, o serviço público acolhia o meu pai em situação salarial razoável, in-vejada por muitos, conseguida através do prestigio de sua família que militava politicamente no Estado. Mas refugiava-se nas leituras que o faziam ilustrado sem ser doutor. “Certos formados...” azedava discretamente, referindo-se a presenças obnubiladas na cena social. Era uma face do seu caráter: valorizava o saber, apesar de não ter chegado à universidade como outros parentes. Recriminava o seu concunhado Manoel ligado ao partido comunista. Presidente do aristocrático clube social (de dança, espetáculos, reu-niões) da cidade, com o seu piso de tábuas de madeira de tons velhos, mas rebrilhantes com a aplicação de cera de carnaúba, criou uma biblioteca que denominou “Humberto de Campos”, cuja estante de madeira e vidros com prateleiras e livros conheci.
Este mundo que vivemos não desaparece para mim e para todos. Pelo menos em curto prazo no processo civilizatório. Parece-me. Aí estão os sumérios, egípcios. Ignoro em profundidade teses espíritas ou científicas sobre outra forma de vida depois da morte do corpo, outra forma de existência da matéria, universos paralelos. A arte e a literatura, entretanto, o preservam − bem ou mal. A técnica, o estilo descritivo das paisagens, a expli-cação das conquistas, das tragédias, dos fastos da existência social. Tenho a minha memória despertada, renascendo na vida, nos sentimentos e circunstâncias em que ressurgem – uma tela, uma escultura, um texto. Revejo cenas esquecidas vividas ao longo de minha exis-tência, tipos amados, odiados, numa verdadeira comemoração no seu reencontro.
Do processo natural de nascimento, desenvolvimento e desaparecimento da ma-téria, dos seres vivos, cuida a ciência, cujas leis foram descobertas pelos homens – algo incontestável e comprovado concretamente. Fico a imaginar, contudo, nos costumes, nos mitos do mundo de minha infância, da minha juventude que sustentavam a sociedade, hoje ignorados ou esquecidos por muitos que os conheceram, viveram. Ali sentia a grandeza, o brilho da inteligência em revelá-los, preservá-los, revestidos em guerras, tragédias, vitórias, derrotas, amores, traições, no dia a dia do Artista Quando Jovem, do Quixote, das Vidas Secas, das Vinhas da Ira, do Grande Sertão Veredas, da Vida Severina, do Alienista, da Pedra do Reino, dos Condenados na Trilogia do Exílio, do Pensador, do Porteiro do Inferno, de Guernica, de Guerra e Paz, das Bandeirinhas, da Carmina Burana, do O Guarani, do Operário Em Construção, do adorável Mindlin lendo Casimiro de Abreu e Castro Alves – os gênios da espécie ou da raça, como queiram. Eis o que me coube conhecer e me basta. Até a linguagem de argot reconstruindo a vida para eternizá-la. E o seu caráter autobiográfico aceitam os filósofos da estética, os teóricos da arte. Afinal reza a legenda “Mateus primeiro os teus”. Verdade ou mentira? Esta a matéria épica, lírica, romanesca.
A História do Príncipe do Sangue do Vai e Volta, realmente é a verdadeira Bíblia Sertaneja Nordestina, tem todos os Livros do Velho e do Novo Testamento. Eterniza a Paraíba, o Sertão com os seus mitos e costumes. Estereotipados os personagens e os acontecimentos, o folhetim não arquiteta enredos. Eis o livro da minha história aventurosa, a minha biografia completa na saga sertaneja. Pensem e reflitam no que digo. Esta literatura não “tresanda imundícies”. Dela tirei a conclusão de que tudo será preservado, reconhe-cido, comentado − um revivescimento verdadeiro. Uma remissão compensatória, um lenitivo para a sensação de perda que nos assalta algumas vezes. Porque os jovens da civilização do automóvel, das bandas musicais de bailarinas e metais, das empresas, da salvação da alma a prazo em boletos bancários, pouco sabem de procissões, de pálios, do fantástico Pavão Misterioso, de feiticeiros e quizombeiros, de prelados, magistrados, cangaceiros, das solenes exéquias e pavorosos crimes, das brigas familiares, das ideologias em disputa. Mas o sertão continua vivo, presente, como o vi e todos o viram e verão. Enfim a pobreza enraizada e a nobreza burocrática. Produto de uma ontologia determinada historicamente.
Eu reunia às vezes muita gente na minha casa na fazenda. Nos dias santos em que ninguém trabalhava, e os observava. Rodadas de café e chá, bolo de caco e até servia cachaça evitando excessos. Emocionados uns falavam ou cantavam mesmo sentados, outros ficavam em pé, se contorciam, estufavam o peito, agitavam os braços, batiam com os pés, coçavam a cabeça, esboçavam gestos de ameaça, máscaras de terror numa admirável pantomima – a sua vida. Todos escutavam atentos os declamadores eventuais dos ro-mances, o que acontecia a propósito de um comentário ou alusão a um fato da vida local. Cansa referir: “Um índio velho vaqueiro... Foi Norberto da Palmeira/Ismael do Riachão/ Calixto do Pé da Serra/Félix da Demarcação/Benvenuto do Desterro/Zé Preto do Bo-queirão... Diga que mate uma vaca/leve queijo e rapadura/E vá esperar por nós/Na fazenda da Bravura/Diga que somos sessenta/ Leve jantar com fartura... Aí chegou-lhe as esporas/ O cavalo então partiu... Mas o boi se fez nos cascos/ E no campo se estendeu...O coronel Sizenando/tinha como devoção/Festejar todos os anos/A imagem de São João... O estilo do sertão:/o que não fizer fogueira/nas noites de São João/Fica odiado do povo/Tem fama de mau cristão...O cangaceiro sagaz/Não se confia em ninguém...Tive nos meus can-gaceiros/Um prejuízo danado/Primeiro foi Rio Preto/Segundo Pilão Deitado...” Gritos, palmas, estrondos. Eu também aplaudia entusiasmado.
Outros tratavam da valentia, da nobreza, da esperteza, dos sofrimentos do amor. Cansa repetir ainda: “Na província da Normandia... A duquesa de Borgonha... Alzira era uma condessa/Filha do Conde Aragão... Deus há de perdoar/Não há filho neste mundo/Para Deus desamparar... Daí seguiu para Roma... Um cabra matou meu pai/Meu pai há de ser vingado/Inda o cabra lá no inferno/Lá mesmo é esquartejado... Não há fardo mais pesado/Do que seja uma mulher/E nem há homem que tire/As manhas que ela tiver... O Cancão nunca armou laço/Que alguém pudesse sair... Depois de Cristo alguns anos/Existia um ancião... No reino da Pedra fina/Existia uma princesa... No dinheiro tem-se visto/Nobreza desconhecida/Meios que ga-nham questão/Ainda estando perdida/Honra por meio da infâmia/Glória mal adquirida... No tempo do carrancismo/Tempo em que os bichos falavam...Então o Duque Agripino/Levou Alzira a Bruxelas... Padre, juiz, escrivão/Não fazem falta a ninguém... O governo federal/Querendo remia o Norte/Porém cresceu o imposto/Foi mesmo que dar-lhe a morte... Menino quem é você?/Meu velho eu sou raceado com homem de inteligência/Homens que não estudavam/Porem tiveram ciência/Tiveram por mestre os livros/Nas aulas da Providência... índios mansos chamados caboclos-brabos...”. Respeitavam a palavra tomada, aguardavam a oportunidade para soltar a voz. Um de cada vez, a cada encontro.
Não receio afirmar que todos os sentimentos que levavam aos fatos da sociedade dos homens, em qualquer estágio econômico-científico, atravessando todas as literaturas e invenções, aí descobríamos no meu alpendre. Tão definitivas e diversas como os do muito falado e ilustrado Shakespeare e outros polígrafos ocidentais.
Termino. Viva o Brasil! Viva a Paraíba!
................... Inverno. 2011. Tudo cheio, sangrando em fevereiro ..................

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

ORTODOXIA DELIRA E AMEAÇA O PAíS

"Para recuperar credibilidade, BC pode subir Selic em 0,75 ponto" (Valor, 23/02).

A taxa de juro no Brasil , 11,25%, é a maior do mundo: atrai capitais especulativos, valoriza o Real, incentiva importações, encarece exportações, aprofunda o déficit em contas correntes (US$ 50 bi em 12 meses), destrói cadeias produtivas locais pela concorrência externa e explode o gasto público mais deletério, o pagamento de juros da dívida pública, que atingiu o valor recorde de R$ 190 bilhões no ano passado -- 15 anos de Bolsa Família. A idéia de combater ameaças inflacionárias --reais, mas em grande parte decorrentes da especulação externa nas bolsas de commodities-- subindo ainda mais a Selic atende às necessidades do país ou à ganância rentista? Leia nesta pág artigo do economista Fernando Ferrari sobre a rota de colisão entre a lógica dos mercados financeiros e os interesses do Brasil.
(Carta Maior, 5º feira, 24/02/2011)

No contexto atual, faz sentido elevar as taxas básicas de juros?
As proposições debatidas em nível mundial convergem para a ideia de que políticas contracíclicas e Estado intervencionista são importantes para mitigar instabilidades inerentes de economias monetárias decorrentes, em boa parte, dos efeitos da atividade especulativa de agentes econômicos e da dinâmica dos mercados. Neste contexto, não faz sentido a proposta de algumas autoridades em quererem, de forma unilateral, elevar a taxa básica de juros para controlar o processo inflacionário. O artigo é de Fernando Ferrari Filho.
> LEIA MAIS | Economia | 23/02/2011

domingo, 20 de fevereiro de 2011

ELEIÇÕES NA ACADEMIA PARAIBANA DE LETRAS
Tornei-me ultimamente − já lá vão trinta anos − um homem de pouca leitura e menos diálogos ou conversas, dado o meu espontâneo recolhimento a uma moradia rural. Sempre falo. Naturalmente tenho o que ver e entender aqui, num nível, entretanto, que o contato com as pessoas do lugar se reduziria a pura intenção e resultado relatorial de pesquisa. Bacharel do Recife dos anos Cinqüenta/Sessenta do século passado − perdão, sou mesmo desse mundo velho −, as ciências jurídicas, políticas e sociais, e a literatura imaginativa, de ficção, dominavam as minhas reflexões. Funcionário público por destinação profissional e familiar, esqueci outras práticas argentárias, apatacadas da vitória fundada nos ganhos. Só a discussão a formulação de conceitos me interessava, e a cadeira onde devia me sentar. Terminei, inesperadamente, membro da Academia Paraibana de Letras. A verdade é que tenho pouco para conversar, entretanto muito para viver neste lugar.
Pois bem. Aqui estou no mato. Mas incursões metropolitanas ultimamente passaram a dominar o meu modo de viver, logo eu, que cheguei a passar cinco anos ininterruptos sem visitar a capital onde vivi e morei por mais de dez anos, deixei familiares e bons amigos. Surpreendente esta anedota, todos dirão. Mas é que fui levado a uma decisão extrema, dessas que corriqueiramente acontece com muitas pessoas, sem a extensão − inaudita para mim − que a minha provocou. História para romance que revelarei um dia, em que pese a significação puramente pessoal da minha estória. São apelos autobiográficos que impõem regras irrecorríveis aos que se revelam pela escrita. O caso é que a linguagem falada é direta e imediata, e a escrita é imaginada, submetida à reflexões quanto a escolha do tema e o estilo da veiculação. Aí está o perigo. Verba volant, scripta manent.
Como sempre faz e fala criteriosamente e elegantemente meu compadre Cíço Fulô – caçador e pescador completo, acabado – ele é negro gordo, inteligente, não deixa nada sem resposta. Para interromper o silêncio, eu o copio e digo: “Bem. Adonde nós estava?” Só não passo a mão na barriga como ele. Retomo o fio: contava a minha vida toda num episódio recente. Aconteceu tudo numa movimentada manhã de eleição na Academia Paraibana de Letras a que compareci. Tive de viajar, me ausentar – uma baralhada inesperada nos meus compromissos, interferindo na costumeira e profissional atividade da venda e troca de bichos de cria da fazenda. Coisa pequena, porém essencial para ajudar nos gastos, encher agradavelmente o meu tempo no estilo de vida de todos, o que nos integra no meio, nos dá vida e alegria, contrariedades menores. E me sinto bem.
Falava da eleição. Ótimos os dois nomes oferecidos para escolha. Pessoas de inegáveis méritos intelectuais os candidatos. A Academia Paraibana de Letras como instituição civil legalmente organizada e submetida à legislação do país − dado a apuração dos sufrágios, constatada a vitória por um voto somente, não alcançando a famosa e jurídica “maioria absoluta” − mandou realizar eleição em “segundo turno”. Parabenizo os candidatos pela inegável relevância do pleito mostrando no resultado a perfeita e necessária expressão de julgamento e escolha. Refiro uma agradável surpresa: Pepita chegou de férias no Chile, marcará festa de sua posse.
Foi uma manhã animada com salgadinhos, docinhos, bolinhos, sucos de polpa de frutas, café. Acompanharam-me o meu genro Mikika e minha filha Sandra, que se mostraram encantados com o ambiente e as pessoas. Com Hildeberto, Gonzaga e Sérgio falamos de literatura, com outros de política nacional e estadual, e da crise no Oriente. Outros falaram da intensidade do inverno, das grandes chuvas caídas que fizeram sangrar o Açude São Gonçalo, localizado em Sousa. Notícia auspiciosa pela garantia da produção do coco verde de Sousa, reconhecido como o melhor do país, como o abacaxi de Sapé, que todos saboreiam nas praias paraibanas, no país inteiro.
Nós sousenses marchamos sempre na frente, desculpem a imodéstia. Antigamente era o algodão que gerava impostos e garantia o pagamento da famosa “folha” de pessoal do Estado. Mas adianto que Sousa tem mais. Esperem para ver. Um grupo de jovens empresários está levando a cidade às alturas do passado. E falam que a EMATER anuncia a discussão de projeto para retomar o plantio do algodão interrompido com a praga do bicudo que destruía a cultura. Certamente com técnicas agronômicas eficientes que nos garantirão esta retomada de atividade agrícola que assegurará emprego para os que ainda moram no campo, mas, com respeito à preservação da natureza, do meio ambiente. Aí está o que não agrada o meu compadre Ciço. “Uma perseguição” ele diz. Como o segundo turno da eleição da academia, para mim,que me obriga a outra viagem à capital. Afinal moro longe (mais de quatrocentos quilômetros) e tenho muito que fazer por aqui... e estou meio “sambado”, “derrubado”. O passar dos anos...
......................................... Fevereiro. Inverno bem começado
ELEIÇÕES NA ACADEMIA PARAIBANA DE LETRAS
Tornei-me ultimamente − já lá vão trinta anos − um homem de pouca leitura e menos diálogos ou conversas, dado o meu espontâneo recolhimento a uma moradia rural. Naturalmente tenho o que ver e entender aqui, num nível, entretanto, que o contato com as pessoas do lugar se reduziria a pura intenção e resultado relatorial de pesquisa. Bacharel do Recife dos anos Cinqüenta/Sessenta do século passado − perdão, sou desse mundo velho −, as ciências jurídicas, políticas e sociais, e a literatura imaginativa, de ficção, dominavam as minhas reflexões. Funcionário público por destinação profissional e familiar, esqueci outras práticas argentárias, apatacadas da vitória fundada nos ganhos. Só a discussão a formulação de conceitos me interessava, e a cadeira onde devia me sentar. Terminei, inesperadamente, membro da Academia Paraibana de Letras. A verdade é que tenho pouco para conversar, mas muito para viver.
Pois bem. Aqui estou no mato. Mas incursões metropolitanas ultimamente passaram a dominar o meu modo de viver, logo eu, que cheguei a passar cinco anos ininterruptos sem visitar a capital onde vivi e morei por mais de dez anos, deixei familiares e bons amigos. Surpreendente esta anedota, todos acharão. Mas é que fui levado a uma decisão extrema, dessas que corriqueiramente acontece com muitas pessoas, sem a  − inaudita para mim −  que a minha me levou. História para romance que revelarei um dia, em que pese a significação puramente pessoal da minha estória. São apelos autobiográficos que impõem regras irrecorríveis aos que se revelam pela escrita. O caso é que a linguagem falada é direta e imediata, e a escrita é imaginada submetida à reflexões quanto a escolha do tema e o estilo da veiculação. Aí está o perigo. Verba volant, scripta manent.
Como sempre faz e fala criteriosamente e elegantemente meu compadre Cíço Fulô – caçador e pescador completo, acabado – ele é negro gordo, inteligente, não deixa nada sem resposta. Para interromper o silêncio, eu copio e digo: “Bem.  Adonde nós estava?” Só não passo a mão na barriga como ele. Retomo o fio: contava a minha vida toda num episódio recente. Aconteceu numa movimentada manhã de eleição na Academia Paraibana de Letras a que compareci. Tive de viajar, me ausentar – uma baralhada inesperada nos meus compromissos, interferindo na costumeira e profissional atividade da venda e troca de bichos de cria da fazenda. Coisa pequena, porém essencial para ajudar nos gastos, encher agradavelmente o meu tempo no estilo de vida de todos, o que nos integra no meio, nos dá vida e alegria, contrariedades menores. E me sinto bem.
Bem. A eleição. Ótimos os dois nomes oferecidos para escolha. Pessoas de inegáveis méritos intelectuais os candidatos. A Academia Paraibana de Letras como Instituição civil legalmente organizada e submetida à legislação do país − dado a apuração dos sufrágios, constatado vitória por um voto somente, não alcançando a famosa e jurídica “maioria absoluta”  − mandou realizar eleição em “segundo turno”. Parabenizo os candidatos pela inegável relevância do pleito mostrando no resultado a perfeita e necessária expressão de julgamento e escolha. Uma agradável surpresa: Pepita chegou de férias no Chile.
Foi uma manhã animada com salgadinhos, docinhos, bolinhos, sucos de polpa de frutas, café.  Acompanharam-me o meu genro Mikika e minha filha Sandra, que se mostraram encantados com o ambiente e as pessoas. Com Hildeberto, Gonzaga e Sérgio falamos de literatura, com outros de política nacional e estadual, e da crise no Oriente. Outros falaram da intensidade do inverno, das grandes chuvas caídas que fizeram sangrar o Açude São Gonçalo, localizado em Sousa. Notícia auspiciosa pela garantia da produção do coco verde de Sousa, reconhecido como o melhor do país, como o abacaxi de Sapé, que todos saboreiam na praia.
Nós sousenses sempre na frente, desculpem a imodéstia.  Antigamente era o algodão que gerava impostos e garantia o pagamento da famosa “folha” de pessoal do Estado. Mas Sousa tem mais. Esperem para ver. Um grupo de jovens empresários está levando a cidade às alturas do passado. E falam que a EMATER anuncia a discussão de projeto para retomar o plantio do algodão interrompido com a praga do bicudo que destruía a cultura. Certamente com técnicas agronômicas eficientes  que nos garantirão esta retomada de atividade agrícola que assegurará emprego aos que ainda moram no campo. Mas com respeito à preservação da natureza, do meio ambiente. Aí está o que não agrada o meu compadre Ciço. “Uma perseguição” ele diz. Como o segundo turno da eleição da academia, que me obrigam a outra viagem à capital. Afinal moro longe (mais de quatrocentos quilômetros) e tenho muito que fazer por aqui... e estou meio “sambado”, “derrubado”. O passar dos anos...
.........................................   Fevereiro. Inverno bem começado

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Praça Rural



PRAÇA E CAMPO - SEMENTES DE INCLUSÃO SOCIAL
            Quero construir praças no campo. Uma idéia que não tiro da cabeça na solidão que vivo na fazenda, sem outra opção que a televisão, a internet, os livros. Outros também sentem essa falta. A exclusão social nos alcança. Necessitamos do contato humano, de conversas, de negócios, de festas nossas não de sua representação. Alerto os governantes. Não se trata de problema orçamentário, mas existencial.
Li sobre a Demografia, os seus conceitos, as suas leis. Não em profundidade, devo esclarecer, mas o suficiente para assenhorear-me dos seus princípios básicos. E nas reflexões sobre a verificação de sua validade, descortino, ou melhor, assisto e participo da grande mobilidade que determina a situação atual das populações quanto à nacionalidade, naturalidade e sua fixação. O desenvolvimento das relações sociais que criaram a conjuntura atual foge à regra da evolução racional, diria razoável, submetida sempre e determinada, pela influência ou imposição de regras determinadas pelo Senhor Mercado Neoliberal. O Estado Global que conhecemos nada mais é do que o “Estado Mínimo”, reduzidos o seu tamanho e poder de decisão à simples formalidade da sua ação. Vale o Mercado Global fukuyamiano. Esta é a grande verdade. A história o comprova desde o êxodo bíblico às remoções populacionais estalinistas. A invasão das áreas desenvolvidas economicamente, ou litorâneas, pelas populações pobres em todos os lugares, na Europa e nos Estado Unidos principalmente, e falando do nosso país, o exemplo de São Paulo e outros estados do Sul, vêm a calhar. Por outro lado, a pilhagem de bens materiais e culturais pelos centros mais poderosos, leva à penúria imensas áreas da terra, a perda da identidade de nações, a um destino errático, em diásporas que se repetem. O campo é sempre a vítima. Até aqui na pequenina Paraíba, na cidade de Pombal, a população inteira de um distrito, ali residente, distante apenas trinta quilômetros da sede do município, foi condenada a perder todos os serviços públicos que ali funcionavam, e teve de aceitar a transferência do seu domicílio eleitoral ex-oficio, na marra, por uma questão de economia das finanças públicas: menor despesa com a construção de estradas, com a instalação de equipamentos burocráticos e seus serviços.  
Tento explanar, nestas considerações, algo a propósito do isolamento quase absoluto a que estão submetidas pessoas que ainda vivem no campo no nosso país, por escolha ou vítimas de coerção, de um dissimulado constrangimento. Tal fato levou os agentes do Mercado à criação de um novo ramo do direito chancelado por organismo público (UNICEF) o “direito à cidade”, explicitado em painéis com metas específicas, em São Paulo e no Rio de Janeiro a propósito de direitos da criança. Puro favorecimento da atividade mercantil, concentrando a exposição e comercialização dos produtos sem maiores procedimentos ou despesas. Barateamento da prática, aumento do lucro. Nada sequer parecido faz o Mercado em relação ao meio rural. Senão macaqueações exaltando um comportamento algo primitivo e atrasado, destruindo um passado inteiro de experiências de vida. Chamo a atenção dos pensadores do novo mundo, para o fato de que ainda vivem moradores no campo, que lá se reúnem para negócios e para o lazer, para as atividades lúdicas. E são pessoas. E que a noção de “praça” não se restringe à planta arquitetônico-urbanística exclusivamente, de um espaço no seu traçado, para uso na cidade. É preciso criar praças rurais. Quero criar praças rurais. Serão expressões de uma realidade cuja vivência nada pode reproduzir, apenas estimular parcerias vivenciais na indústria, na arte. O processo produtivo agrícola e pecuário, as festas votivas, as gestas que fizeram nascer a agilidade da poesia, do cordel, são frutos da vida campestre, impossível encontrá-las na cidade.  Desaparecerão sem referências apropriadas à sua natureza e origem.  Somente as praças rurais as salvarão.
 Cientistas e intelectuais sofrem assustados os efeitos da perda da tranqüilidade e pela insegurança que domina a vida social em todo o planeta. Classes, castas, religiões, crendices, seitas se entrechocam no ambiente social urbano, levando a explosões fratricidas. É a submissão ao Mercado. A ciência e a técnica permitem a produção de bens e serviços, até a ameaça de exaustão do produto explorado, industrializado e do ambiente natural. A cultura, esta, criminosamente perde a noção de sua cristalização em tradição e costume. Tudo vale como mero folguedo. E esta riqueza resta inutilizada, perdida em estoques guardados com segurança, ou abandonados ao relento, e em projetos anotados em livros volumosos nas estantes, na memória dos computadores. Criação de mitos inconcebíveis numa sociedade justa. E é precisamente esta sociedade justa que eles tentam inviabilizar. Esquecemos a significação do que chamamos parcerias: a divisão, a distribuição do produto fruto da experiência local para universalizar o consumo. Falo de parcerias mesmo no exato significado da palavra: troca. Transferência simultânea de experiências. `As vezes tão aparentemente desnecessárias, como levar apresentações do Festival de Inverno de Campos do Jordão para São Paulo, apenas por uma vaidosa concepção da   visibilidade do trabalho dos que o fazem, cujo mérito deve ser reconhecido como de grande valor social, para eles lá em Campos do Jordão. 

domingo, 13 de fevereiro de 2011

Praça Rural

PRAÇA RURAL III
(Notas da Fazenda)
Acatando sugestão do amigo César Nóbrega – esquerdista de plantão – que me presta valiosa colaboração na possível atualidade dos comentários que divulgo neste blog, fiz assinatura da revista “Brasileiros” editada em Pinheiros, São Paulo. Buscava informações para basear argumentos em defesa de um projeto que imaginei e entrego para discussão pública – a criação de Praças Rurais. Recebido o primeiro número da revista, o 36, com suplemento, espantaram-me e me encantou o luxo do papel utili-zado na impressão primorosa, e, no nível do escalão financeiro dos anunciantes, nem é bom falar. Vale a pena conferir. Mas adianto: nada de preconceito contra a exibição da beleza e esmero de um produto jornalístico; muito menos de abatimento moral, e de empedernido complexo de inferioridade em relação ao poder do dinheiro. Para mim, naquele escalão VIP da nação, estava o mapa da mina para financiar o meu projeto, pela presumível prodigalidade que às vezes a riqueza permite, pela sua inescusável origem rural (ver Chico Buarque: “o meu pai era mineiro, minha mãe era baiana, o meu pai pernambucano, o meu avô estrangeiro”?). Engano nos versos? Uma tolice rematada? Guardo esperanças.
Quanto aos escribas ou plumitivos da editoração − melhor chamá-los jornalistas mesmo −, vocábulo mais atualizado e que desfruta no panorama global do planeta um inexcedível prestígio, eles assinam textos verdadeiramente representativos da suspeita parceria pública/privada, no funcionamento de instituições oficiais e civis, a mídia inclusive, desde que respeitadas as regras do “custo-benefício” (quem é quem? qual é qual?) da informação, que o sistema criou. Arre! Porque as regras neste mundo do lucro financeiro são irretratáveis, desde que aferidas pelo Mercado também global que chegou ao “fim da história”, aplaudidas por quem as sofre e as não entende, não as discute. Quanto ao governo, isto é outro departamento, pode tudo, mediante fatu-ramento legal, anunciar, cooptar, chancelar, quem sabe até se desdizer. Porque afirmações peremptórias de certas autoridades mais parecem simulacros e arremedos, para coonestar o que é indecente.
Very important person para ver nas páginas da Brasileiros número 37, como o craque Raí e um machão atlético de cinqüenta anos que “relaxa nas areias Maldivas, pequeno país insular no Oceano Índico” (“Perto do Coração Selvagem”pags. 76 a 79). Coisa assim no gosto do ex-presidente Collor que depois de eleito, sem projeto de governo fugiu dos paparazzi e se refugiou nas Seicheles, ilha ignota também à deriva no remoto oceano. Imaginem os leitores a badalação em Dubai, em Las Vegas, na Avenida Paulista, que tal evento provocou. E em Paris e Aruba. Ali está o dinheiro, corre farto, e o governo atento às opiniões dos turistas que sustentam o Mercado, geram empregos, etc. se põe de acordo. Tradição fala de uma economia atrasada, do passado, não gera riqueza considerável em termos atuais. Este o problema.
   Mas quero, verdadeiramente, falar sobre Praça Rural: sombra e bancos em locais freqüentados no campo, para negócios e lazer dos que ali vivem. Defendo a história e o passado de uma população. Evoluindo o projeto, segue-se a organização burocrática e uso de tecnologia e equipamentos modernos para os fins próprios. Somente assim é possível preservar a paisagem, a memória, a tradição. Porque as festas de São João e a Vaquejada, vistos na cidade, ferem e doem pelo ridículo com que fantasiam e nomeiam os personagens e a comemoração. Se insistirmos muito em vôos transoceânicos e transcontinentais, perderemos a nossa identidade de Nação. Nada contra esse prazer de viajar, falo apenas da defesa da nossa tradição que nos dará identidade e ilustrará a nossa história. Repito: é bom escutar Chico Buarque, quero dizer a sua música, porque a sua literatura e a de Jô Soares, como afirmou Wilson Martins (História da Inteligência Brasileira, diversos volumes) crítico literário que lecionou durante 26 anos em Nova York, é de brincadeira.
*
            A “Brasileiros” 37 que acabo de receber, me premiou com uma excelente entrevista do Ministro da Cultura, usando paletó e brincos, narrando as suas aventuras e participações em fóruns culturais internacionais (mais de vinte em dois anos) acolitado por brilhante comitiva, que deu à Cidade Velha da Ribeira Grande na Ilha de Cabo Verde o título de Patrimônio da Humanidade e evitou que as Ilhas Galápagos perdesse, ao assinalar que temos muito a ver com a primeira “pois boa parte dos escravos que veio para o Brasil passou pelas ilhas”. E quanto às segundas, talvez a criação de cabras? Mas ele afirma do alto de sua prosopopéia: “Não podemos usar a simpatia que o Brasil tem no mundo para sermos um novo imperialismo”. Que coragem! A propósito, quando vejo uma mulher bonita bem “produzida” sem um elegante e rico par de brincos, para mim está faltando algo próprio dela, importante e indispensável; ao ver homens usando qualquer traje, com brincos enfiados nas ore-lhas, para mim está sobrando efeminação, frescura, embora, estranhando os respeite, tolere e com eles conviva, sem usar os penduricalhos. Eu hein! Sou chateado com tal comportamento e tenho muito amigos espadas, machos (acredito), cultos que praticam tal moda. Vá La que seja!
            Descobri, entretanto, para tristeza minha, que naquele circuito esnobe não encontraria apoio para a minha pretensão: criar Praça Rural. É preciso, antes de tudo, avaliar a “dimensão econômica do consumo”. Parece linguagem de ritos de iniciação em sociedades privatistas, de cunho obscuro, esotérico. Porque prevalecendo tal critério de avaliação, no reino das humanidades não funcionarão projetos sociais, somente os mercantis, recomendados segundo regras mercadológicas (marketing?). É o que diz o Ministro de brincos. A ele, contudo, credito a idéia dos Pontos de Cultura, implantados e ativos nas cidades, que estarão certamente presentes nas Praças Rurais, que receberão ainda parte dos sete bilhões por ano que serão “injetados na economia por meio do consumo cultural” – o Vale Cultura −, em discussão no Congresso Nacional, para gáudio do Mercado, e também idéia do Ministro de terno e brincos, segundo ele, derrotando o meu preconceito. Com ele a Praça Rural teria sua vez, pois até agricultor ele se declara ao comentar a gestão do seu antecessor também de brincos: “Gil plantou sementes de uma revolução nas políticas culturais brasileiras e agora estou colhendo os frutos dessa mesma agricultura”.  A prática do plantio e da colheita se realiza no campo e não na cidade, daí a minha esperança que a visão do ínclito burocrata chegue até nós campesinos – às Praças Rurais.
            No princípio era o Verbo, está na Bíblia. E no princípio da sociedade dos ho-mens está o campo, a agricultura. A roça, a Praça Rural, portanto. Senhor Ministro Juca Ferreira, escute e atenda o apelo dos campesinos, dos matutos, dos caipiras que ainda existem, vivem e trabalham. Projete, programe e implante Praças Rurais no país..........


 


domingo, 6 de fevereiro de 2011

Prosa Caótica II, Cad 3, 1988/1990


PROSA CAÓTICA II, O Duro Recomeço, Caderno III (1988/1990)
1

Um vento solto açoita a catinga. A expressão “vento solto” é usada pelos sertanejos para o vento que sopra na seca. É um vento forte e sem direção certa, quase sem interrupção, apenas abrandando, rodopiando em redemoinhos, inesperadamente, nas horas quentes. Às vezes entra casa à dentro o hálito de fornalha batendo portas e janelas. Vem do inferno, dizem.

Terminado o inverno, dedicam-se todos à colheita, todos têm para comer o produto das roças, mas persiste a preocupação com os preços do que necessitam comprar na cidade: querosene, sal, sabão, roupas ordinárias, minúsculas redes. Precisam também de trabalho, de um ganho extra, uma diária para atenuar a miséria.

Passei os festejos de São João na cidade. Voltei para a fazenda no São Pedro. O administrador fez uma fogueira votiva em frente à minha casa, e trouxe milho verde para assar com a palha, como é o costume. Moradores da vizinhança chegaram para conversar. Participei de um jogo de sueca que organizei, pela impossibilidade de sustentarmos um diálogo qualquer. As pessoas da cidade, com nível médio de renda e de cultura, sentir-se-ão isoladas neste mundo como ele é.
Sem outro atrativo para a data festiva, as crianças pediram a presença de um adulto para “contar histórias”. Trata-se de um costume antigo, referenciado por Câmara Cascudo, e que, no meu entendimento, carrega todo o peso de um sonho de libertação. Não foi possível atender-lhes o hábito guardado na memória, eventual e esporadicamente estimulada. Desapareceram no Nordeste onde vivo os contadores de história.
2
Durante o período – quase noventa dias – em que parei a redação destas notas, refleti sobre a minha atividade de caracterizado amadorismo literário, traduzido não somente no ato de escrever, mas na discussão e abordagem de temas que o pro-fissionalismo – alienado embora – oferece com atrativos pseudocientíficos, calcados em estudos sistemáticos. A minha prosa ressente-se de leituras apressadas da adolescência, e perde-se em reminiscências que a memória faculta desordenadamente. Mesmo assim, longe de constituir-se em exemplo, esgota-se desatualizada.
3
Houve uma época em que os escritores brasileiros eram lidos quase exclusivamente pelos confrades. A obra literária era facilmente aceita e elogiada, pela necessidade do retorno do elogio, da distribuição de premiações, como esclarece Nelson W. Sodré no seu EM DEFESA DA CULTURA.
O desenvolvimento das relações capitalistas e industriais refletiu na atividade literária, o varejo da obra de encomenda, desligada da evolução cultural do país. Se hoje temos um público leitor já formado, este é muitas vezes obrigado a consumir best-sellers duvidosos, pela divulgação e pelo preço acessível, e que nada têm com a vida brasileira. Existe, é verdade, uma escassa publicação de autores nacionais e estrangeiros, em literatura e ciência e vendidos a preços proibitivos, perdidos nas bibliotecas de algumas instituições, quase inacessíveis nas li-vrarias.
Defende-se a classe dirigente. O conteúdo revolucionário da arte literária e das ciências, como partes da teoria geral do conhecimento, refletindo a realidade dialética do desenvolvimento da sociedade e da natureza, constituem uma permanente ameaça à sonhada imutabilidade de estruturas de-cadentes, dos privilégios burgueses. Outro aspecto a destacar na posição dos intelectuais com a eficiência socialista e as crises capitalistas é a especialização mesquinha, patrocinada. Assim os trabalhadores intelectuais, fechados em círculos estreitos, pro-duzem uma caricatura de arte, cumprem impo-sições burocráticas e de mercado. Modismos são confundidos com novas formas literárias, fruto aleatório do desenvolvimento cultural.
4
A propriedade e suas exigências começaram a tomar o meu tempo. No longo intervalo entre estas anotações e as que reuni em outro caderno, desviei-me do meu projeto de leituras. As coisas na fazenda não andam mal, porém, o administrador, para agir como outros o fazem, costuma procurar-me para dar conta de serviços contratados, colheita, estado do rebanho. Nada que produza consideráveis rendimentos financeiros. Vivo de uma aposentadoria no serviço público e procuro tornar-lhes a vida menos pesada. Recebo-o com poucas palavras, sem muito interesse, pois sei que tudo está a contento. Ele tenta mostrar o seu desempenho para assegurar a boa situação que desfruta em relação aos demais. Sou tomado de profunda emoção diante de sua figura rude, os gestos acanhados, submisso.
Pesa na consciência do trabalhador rural nordestino o desamparo ancestral, a indefesa condição de servo de gleba, a distinção marginal em face da lei, o que é uma dura realidade. Vive a vida possível, vislumbrando apenas em rápidas reflexões, as mudanças que poderão acontecer. Sabe da existência de sindicatos de trabalhadores, de direitos assegurados, mas pouco reclama.
Defende-se da grosseira exploração na contratação de empreitadas, esperando que um erro na avaliação da tarefa, lhe dê condições de melhor remuneração pelo trabalho duramente executado. Vejo na preferência pelo contrato de empreitada, uma forma do trabalhador esquivar-se à exploração permanente, que o submete à condições indiscutíveis. Assim eles entendem, tenho certeza.
No ambiente adormecido da fazenda começo a sentir-me isolado. Percebo que me olham penalizados com a minha solidão. Extraordinárias criaturas que do fundo de uma vida miserável, arrancam ainda do íntimo um sentimento de compassiva solidariedade.
5
Fiz algumas viagens à Sousa e terminei envolvido nos assuntos da política local. Participei de reuniões para escolha de candidatos nas eleições de novembro. Não quero retornar à vida passada. Velhos amigos que me ajudaram, necessitam agora da minha experiência na política partidária, do apoio para os seus candidatos. Não consigo furta-me aos apelos. As questões locais e as atividades na fazenda têm muita força, a esta altura da vida, dedicada quase inteiramente à luta pelo poder e pelo dinheiro.
6
Sobre a política e a administração pública, alguns trechos de um comentário sobre um livro atual, ainda não publicado em tradução no Brasil. Li-o no INTERNATIONAL HERALD TRIBUNE (1982), a bordo de um Jumbo da Air France, entre Paris e Roma, lembrando o que fazia o conterrâneo Assis Chateaubriand. Na impossibilidade de uma tradução “literária”, sem outras pretensões, vai o texto original:
THE FUTURE OF INTELECTUALS AND THE RISE OF THE NEW CLASS, by Alwin W. Gouldner, reviewed by John Leonard.
“What is the ‘New Class’ that is taking over? Acoarding to A.W.G., Max Weber Professor of Social Theory at Washington University in St. Louis, the New Class consists of scientists, educators, managers, comunicators, publicity agents, maybe literary critics and other ‘professionals’ whose business it is to run culture. Culture – knowledge and skills – is in fact the capital of the New Class.
What does the New Class want? Gouldner is specific: more money and more power. ‘The New Class’, he says, ‘believes its high culture represents the greatest achievment of the human race, the deepest ancient wisdom and the most advanced modern scientific knowledge. It believes that these contribute to the welfare and whealth of the race, and they should reveive correspondingly greater rewards.’
He goes on: ‘The New Class believes that the world should be governed by those possessing superior competence, wisdom and science – that is, themselves. The Platonic Complex, the dream of the philosopher king with which western philosophy begins, is the depest wish-fulfilling fantasy of the New Class. But they look around and see that the men who employ them do not begin to understand the simpliest aspect of their techinical epecialities, and the politicians who rule them are, in Edmund Wilson’s words, unique having mannaged to be corrupt, uncultivated all at once.
Have they these secular priests and treasonous clerks, some desadvantages? Yes. They are divided into two camps; the intellectuals, who are roamantic moralists, predisposed to utopianisnm, and the tecnical intelligentsia, who are amoral puzlle solvers and mnagement types. The intellectuals go on about what is ‘good’, the technical inteligentsia want to be left alone. And the fact they are all elitists and careerists makes them hather unsymoathetic to the rest of us, who must muddle along in our own inferiority complexes.”
Não li o livro de Gouldner, apenas a recensão da qual transcrevi os trechos acima. Essa conduta do intelectual em face da sociedade, decorre da contradição pessoal entre a sua vida burguesa e a inevitável condição do trabalhador assalariado, embora “não integrado ao modo de produção capitalista.”
No avançado estágio de progresso técnico e científico atingido pelos EUA, os intelectuais, vencido o antagonismo que se revela em indivíduos isolados, têm um papel fundamental no processo de desenvolvimento da luta para o socialismo, na linha de frente da classe operária. Assim Marshall Berman, Edmund Wilson, John dos Passos e tantos corajosos humanistas americanos.
Luckács afirma que “quanto mais complexos e complicados são os problemas, tanto maior é o papel que a literatura deve desenvolver na evolução social, na preparação ideológica das grandes crises.
7
Realizo-me literariamente redigindo estas notas. Impressões de leituras que não fazem de mim um crítico. Escrevo poesia e prosa. Faltam-me a força criadora do artista e os conhecimentos teóricos do crítico. Insisto, não desisto. O que fazer?
Houve um tempo na minha vida, dedicado à leitura. Uma espécie de fuga do meu mundo, que o achava prosaico demais, perdido na obssessão dos grandes dramas, como se estes somente existissem na ficção literária.
Quase nunca me satisfaz o que escrevo. Relido e texto surpreende-me a deficiência no uso da língua: repetição de palavras, dúvidas relativas à gramática.
No plano das idéias e da criação, receio sempre estar repetindo coisas alheias, decalque de apressadas leituras, ou identidade de pensamento com escritores consagrados e preferidos.