terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Ronaldo Cunha Lima


RONALDO CUNHA LIMA, POETA DE SALA E QUARTO

Eilzo MATOS

Muito nos conhecemos, de muito tempo. Falo do poeta Ronaldo Cunha Lima. Poucas, todavia, foram as oportunidades de encontro com celebrações clássicas no estilo campinense  ─ varando noites e dias, ditando normas, institucionalizando comportamento. Sabíamos da existência um do outro, da identidade das nossas idéias sobre a política e a estética. E marchamos por caminhos que o tempo traçou em itinerários diferentes, no campo das realizações humanas, no caso a militância política e intelectual. Mas sabíamos um do outro, repito, e nos referíamos cada um ao outro, na sincera asserção de uma vivência pretendida, plena de romarias e comemorações.  Os nossos sentimentos, a nossa busca comum, nasceram em Campina, a origem de tudo, daí o toque de imortalidade. Veja as coisas como são.
 Campina Grande tem para mim um significado profundo, inusitado para alguns, mas formador de um dominante estado de consciência na minha vida. Vou ser franco mesmo. Sou mais campinense roxo do que Cleidson Tejo e Agnelo Amorim. Quando chego lá eu sinto. Estou em casa. Seria influência do grandiloquente condoreiro Orlando Tejo, das calçadas da Maciel Pinheiro ─ o lazer da época ─ ou “campinismo” mesmo, como zombam os despeitados do litoral?  
 Entre outras cidades considero Campina maior e melhor, dada a sua localização histórico-geográfica num vasto mundo novo que não ignora as conquistas do velho; privilegiada pela sua população contemplada com o tempero de origens em todos os continentes, honestamente, humanamente vivenciadas; possuidora de nomeada na expressão dos seus heróis do trabalho, dos seus artífices e filósofos construtores dos monumentos do conhecimento humano, feitos de pedra e de idéias. Pouco? O mundo inteiro, toda a vida social conhecida abriga-se nessas condições circunstanciais, nessas teses evidenciadas. É a Campina de Ronaldo que se ergue, distanciando-se inalcançável, inimitável.
Passado algum tempo sempre volto a Campina onde fui aluno do colégio de Padre Emídio, o lembrado Pio XI dos anos Cinqüenta. Não volto para o impossível reencontro boêmio com Eduardo Ramires, Deodato Borges, Perico, Palmeiras Guimarães, mais e mais poetas, e o incomparável vate e poliglota Oinotna Sevla Searom (anagrama de Antonio Alves Moraes, ─ como ele gostava e se assinava) garçom do “Ponto Chic”.
                    Na busca do aprendizado da língua e do falar nipônicos  ─ refiro-me ao vate poliglota, ─ ele foi estagiário sem remuneração nos navios de pesca japoneses, fundeados no porto de Cabedelo, e por fim, burocrata civil de uma repartição militar. Está aí o modelo sem sorte de um poeta que viveu de reboladas grande parte de sua vida. E o que é pior, ignorado pela cultura oficial que lhe tem negado qualquer referência. Faz-se necessário que outro Orlando o faça real e verdadeiro, como outro o fez com Zé Limeira. No caso o atinado Gonzaga Rodrigues, seu colega de quarto, que ouvi declamar em tupi, numa mesa do Café São Braz, os versos de Gonçalves Dias “Minha terra tem palmeiras onde canta o sabiá...”  vertidos para o idioma índio pelo comentado bardo.
 Para explicar Ronaldo, recorro a aspectos da imagem deste poeta que falava lia e traduzia alemão, espanhol, inglês, francês, latim, italiano, grego, também esperanto e tupi que lecionava gratuitamente (tudo aprendido em Campina), sem atentar para a tragédia pessoal do amanuense Policarpo Quaresma que sofreu e desapareceu nos desvãos do destino e da vida ─ uma criação de fato imortal do nosso Lima Barreto. Desafio personalidade alhures, no mundo que se equipare a Oinotna. Falou-me um amigo que ele faleceu em conseqüência de espancamento, sofrido em luta desigual, disputando com altivez e coragem o amor de uma dama numa das agitadas ruas da periferia local. Faltaram-lhe os bálsamos encantados, que sempre restituíam ao imba-tível Quixote, a vida prestes a esgotar-se em duelos mortais com desaforados cavaleiros.
 Oinotna era assim, poeta de sala e quarto ─ político e amante, como Ronaldo. Atencioso, polido, com o traço pessoal dos dentes superiores meio projetados para fora, donairoso entre os notáveis, brilhava no seu en-fatuamento tragicômico de paletó e gravata, a estatura pequena, o olhar sereno, o riso sincero. Ele tipifica Campina na auto-realização do seu mito, imortal como a Hidra mitológica, apesar da tragédia inexorável que avassala o mundo e a envolve, que alcança o Poeta de Sala e Quarto. Mas a tríade Oinotna/Campina/Ronaldo, ocupa, esgota todas as possibilidades.
Eu e Ronaldo, como dizia no início, continuamos distanciados apesar de tão próximos, é a triste verdade. Tal como eu, ele sempre retorna a Campina na busca do seu Graal, e nos perdemos na volta, pois não se encontra nada do que se deixou, do que se viveu, contrariando a sentença do ficcionista conterrâneo José Américo  ─ um gigante da política e das letras ─ que falava certamente das trilhas, dos caminhos. A minha memória campinense guarda, todavia, a legenda do “soneto do chapéu preto” de Asfora, do “hábeas-pinho” impetrado nos versos de um despachado humor lírico ronaldino, que criou estilo e marcou época em territórios vários, com a verve incomparável dos seus ditos e não ditos, em sala e quarto ─  ele poeta sumamente ubíquo, assim podemos denominá-lo, qualificá-lo, apelidarmos. E o seu antológico soneto  Não existe vida inteira” (à maneira de posfácio do romance “O Silêncio do Delator” de José Neumanne Pinto) de uma profundidade inegavelmente filosófica que poucos alcançaram, o consagra. Copio o terceto final:
 A vida tem capítulos e fases. /  Pecisamos apenas ser capazes /  de unificá-los numa só história.”
 Ronaldo vergou fisicamente, cedo, porque procurou sustentar nas costas o peso de toda a poesia e de todo o sentimento do mundo, de que falava o vate itabirano. Correu mundos expulso de sua terra, tangido pelo arbítrio de um governo militar, perseguido pela intolerância dos esbirros remunerados, ele sempre altivo e feliz na luta pelas suas idéias políticas, pela sobrevivência, vitorioso sempre.
 Afastado da leitura, morando no mato, eu não acreditava nos seus livros de que ouvia falar, Para mim, ao escutar os ecos e vozes dos seus versos, ele era um poeta de gênio, mas eminentemente verbal, vexado, que improvisava, porém não escrevia poesia. Não lhe sobrava tempo. Seria como os nossos irmãos violeiros e repentistas, um Inácio da Catingueira, um Pinto do Monteiro ─ e no contexto e textos que demandam a nossa tradição cultural, a nossa história ocidental ─ o nosso Homero da Borborema.
 Eis que um livro seu me chegou às mãos, com um atraso de treze anos. Não a esperada epopéia. Poesia anacreôntica, isto sim, dominada pelo erotismo báquico de suas canções, o lirismo sensual de epitalâmios. Falo de ”Poemas de Sala e Quarto.” E o traço barroco-sensual das ilustrações de Flávio Tavares, um incontestável gênio do desenho e da pintura, cumpre o objetivo da obra poética, completa os propósitos do autor, Comprei-o em liquidação na Livraria Universitária na praça ao lado do antigo Capitólio. Que obra! Perdoem-me os despeitados, os tipos rebarbativos que flutuam nos salões com o risco de pipocarem como bolinhas coloridas que enfeitam festas infantis.
Para falar sobre o seu livro, evito a tentação do método de Jakobson, na análise sobre Lês Chats de Beaudelaire, reduzindo à coordenação das proposições da língua, faces do poema que interessam à sociedade e à história, diferentemente de Carpeaux que revelou as transformações e transfigurações que sofreram a imagem do poeta ”vase de tristese, ó grand taciturne”, nos olhos da posteridade, e do prefaciador Nêumanne nos comentários buscando nos domínios da literatura comparada a explicação do poeta Ronaldo de Campina.
Aventuro-me na tentativa de anunciar uma nova técnica de expressão poética, aliás, corriqueira no gênero. O escritor Ricardo Soares comentando Ronaldo, socorre-me, afirma que “a verdadeira poesia é diferente para cada poeta em cada momento... inspiração, experiência, confissão, lembrança, conhecimento, um sistema coerente de pensamento, sutil música verbal.” Encontro algo parecido, nas sentenças breves contidas no estilo-modelo hai-cai que nos oferecem os filhos do País do Sol Nascente, no modo rocambolesco, misterioso e investigativo de Chordelos de Laclos, na lascívia oriental de Omar Kayan, no socialismo stakhanovista de Vladimir Maiakovski e mais inventores e criadores que passeiam entre os gregos, romanos e levantinos, com as mais variadas técnicas do verso, praticadas e aceitas, algo poudiano; e a adequação da língua, nas variações da sua prosódia ajustando as idéias à melodia de um texto aforístico, prazeiroso pelo seu lirismo, erudito pelo seu conteúdo. Eis os segmentos apotegmáticos de Poemas de Sala e Quarto.
“– Na sala / eu sou ¼./  No quarto/ eu sou inteiro,”
Jacta-se o poeta. Verdade ou mentira? Fingimento? Dissimulação? Algo sofrido? Como descobrir les liaisons dangereuses que escondem as suas palavras? Simplesmente jogo de palavras? Ah! Como os poetas se conhecem. Pessoa bem que o afirmou:
O poeta é um fingidor… /  E os que lêem o que escreve/ Na dor lida sentem bem/ Não as duas que ele teve / Mas só a que eles  não têm.”
Em Ronaldo o apetite sexual parece uma eterna busca. “Poemas de Sala e Quarto” o confirma. Ele deseja estender até ao mundo dos inanimados, das coisas materiais a incontida ânsia dos seus desejos:
 Se nossos chinelos vissem/ sobre a cama os travesseiros/ talvez até decidissem/ sob a cama ser parceiros.”
Mas carrega as suas estações de dolorosa parada para reflexão. Ronaldo é um poeta ligado a um momento da história política paraibana, nacional. Não tenho coragem de dizer, de julgar o que mais o distingue ao longo de sua vida. Como acertar, se ele dissimula e finge? Uma condição explícita o caracteriza, e todos concordarão: foi o poeta político que disputava eleições, fez oposição ao regime militar, na Paraíba e por onde andou. Lutou, não cedeu, venceu. Maiakovski, entre todos os títulos, consagra-o o de “poeta da revolução russa.”
Muito pior, com certeza/ que uma sala sem mesa/ é uma mesa sem pão.” 
Sua mente não repousava. Muito ainda resta para falar sobre Ronaldo e Oinotna para completar o ciclo da vida: a severidade e a alegria, os lauréis e as palmas. Campina rediviva.
Quero deixar claro.
Vi a luz da vida em Sousa, onde nasci, falo com orgulho. Em Campina recebi os raios dos conhecimentos acumulados pela sociedade, descobri a prática da invenção, da construção, da criação, da imitação com os seus perigos inerentes. De Sousa guardo a memória do aprendizado, do espanto com os fatos da vida, destruindo já a inenarrável memória da infância; de Campina a descoberta do colóquio libidinoso dos poetas com os leitores, com o mundo  ─ que permanece dominante nas reflexões inevitáveis. O amor e a guerra entrelaçados.
Campina nada deve a Dublin nem a Londres, a Paris nem a Boston, a Pequim nem a Moscou. As pessoas e a sociedade cumprem as mesmas tarefas. Nada as distingue, exceto o nome dos narradores de suas trilhas aventurosas ─ inevitável mesmice das tragédias e comédias. Nada existe de novo debaixo do sol, adverte a sabedoria bíblica. Com efeito, não dá para rememorar tudo, conferir tudo. Por isso identifico no campinense Ronaldo, um criador entre tantos, um metingueiro que insiste em viver na rua, e se esconde, hoje, convocado pelo Olimpo para ocupar o seu lugar no Parnaso.
Ninguém melhor do que Ronaldo entoa o profético cantar dos poetas de que falou Pound, criando, inventando estilos e formas.
Impõe-se, no caso, numa leitura crítica e comparativa de Ronaldo, uma releitura de O EU PROFUNDO E OUTROS EUS, de Fernando Pessoa, e de POESIA, de T. S. Eliot, em tradução, introdução e notas de Ivan Junqueira. Surpresa?
A poesia no seu conteúdo, na sua forma deve a sua expressão à emoção, sublinho. Assim entendem T.S. Eliot e Fernando Pessoa. Vou transcrevê-los, adiante, em apoio às minhas afirmações.
 A emoção. Dorme no cérebro, no fundo da consciência, nos neurônios para falar moderno, esse poderoso sentimento, até que despertado, caracteriza o fazer humano. A arte é profundamente emocional. A leitura dos versos destes dois poetas transmite-nos esta certeza; mas, igualmente racional e intencional, se atentarmos para o “vanguardismo” técnico presente nas suas obras.
A arte poética, todavia, não se esgota na renovação formal.
Fernando Pessoa escreveu: “Um poema é a projeção de uma idéia em palavras através da emoção. A emoção não é a base da poesia: é tão somente o meio de que a idéia se serve para se reduzir a palavras.”
Escritura de Eliot: “The only way of expressing emotion in the form of art is by finding an objective correlative; in other words, a set of projects, a situation, a chain of events which shall be the formula of particular emotion.”
Pessoa fala em “emocionalizar o pensamento”, e Eliot assinala “the intensity of the artistic process.”
O tema oferece-se, portanto, para uma análise de aproximação da técnica de construção poética, que encontramos nas variações estilísticas e temáticas de Ronaldo, arrebatado pela emoção, poeta capaz de cantar baixinho, de chorar e de explodir em gritos tonitruantes, no caudal da emoção, admito, que é o seu estado e espírito. 
Poetas, historiadores, romancistas, estadistas. Toynbee, Proust, Confúcio, Hitler, Onassis, Rockfeller, Robin Hood, tivemos os nossos. Apenas os nomes diferem, repito, tanto dos escritores como dos personagens, humanos sempre. Consultem Dinoá com seus retratos ao vivo, Josué Sylvestre com as suas revelações biográficas interpretativas, Epitácio Soares e Elpídio de Almeida com as suas fontes e o seu estilo paroquiais, e tantos e tantos, e lá encontrarão os generais, os capitães de negócios, foliculários e tratadistas eruditos, que viveram ou vivem ainda em Campina. Vejo e sinto no que digo verdades verdadeiras, constatadas irretorquivelmente. E Ronaldo as encarna multifacetariamente.
Não dá para falar isoladamente de pessoas na construção dos mitos que Campina propiciou, numa caracterização do sonho grego de uma civi-lização universal que se tornou única e insuperável. Tratemos de famílias e de tipos, de indústrias, no sentido de destreza, engenho e arte, que a notabilizaram, campinense na essência, enfim..
Conhecemos os Lauritzen, Figueiredo, Almeida, Cabral, Gaudêncio, Habib, Chabo, Procópio, Luna, Tejo, Cunha Lima, Asfora, Barreto, Rique, Amorim, Celino, Mota, Agra, do Ó, Hamad, Wanderley, Dantas, Rego, Pinto, Soares, Afonso Campos, e outros e outros, e os tipos e as personalidades inconfundíveis de Ataliba Arruda, Otávio Amorim, Pinta Cega, Mário Araújo, Zeca Chabo, Zefa Tributino, Nathanael Belo, Moacir Tié, Paizinho, Dona Irene, Fausto Alfaiate, Maciel Malheiro, Oliveiros Oliveira, Soares, Seu Muniz, Moço Amorim, Antonio Bioca, Nereu do Cartório, Giseuda Moreira,  dr. Zé Arruda e Manoel Pé de Rotor, as rádio Cariri, Borborema e Caturité e tantos e tantos, ah! Imperdoáveis omissões. No tocante à ideologias e proselitismo, tivemos o comunista Peba que nunca esteve em Moscou em oposição a um empresário Barreto que falava inglês e morou nos Estados Unidos. Paremos no começo.
                                                        Sousa, janeiro de 2006.

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