sábado, 29 de janeiro de 2011

PROSA CAÓTICA II, CADERNO 2, 1988/2000



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Li em Ascendino Leite aborrecida censura aos escritores brasileiros “maravilhosamente bem postos e bem remunerados, num país livre que já não persegue ninguém por motivos políticos, muito menos os que vivem de assinar manifestos.” (Os Dias Memoráveis).
Modelo de “euismo” como ele próprio qualifica esse defeito do caráter ou da perso-nalidade, AL goza as delícias de altos proventos, merecidos reconheço-o, conquistados sem o risco de assinar manifestos contestatórios. O que não condiz, certamente, com a sua formação política e intelectual.
Reclama ainda o autor de o SALTO MORTAL, o minguado espaço oferecido pela im-prensa brasileira para denunciar “as atrocidades soviéticas contra os direitos humanos.”
Militante no jornalismo brasileiro, Ascendino Leite sabe que não é bem assim, como ele declara no seu jornal literário. Neste “país livre que já não persegue ninguém”, temos assegurado o privilégio de poder ignorar que não existe tortura maior do que a fome, o desamparo da lei, forja-dores da violência.
No Nordeste vivem milhões de torturados brasileiros, neste “país livre”, nas condições que ele testemunhou e viveu. Mas para ele, essa história de brasileiro sem casa e sem comida na Cidade Maravilhosa, nas belas tardes de São Pedro, onde ele escreve o seu jornal blasé, deve ser propaganda antigoverno do comunista Ferreira Gullar. Nesta ordem de raciocínio, o meu parente Ascendino também deve achar que o povo passa fome por preguiça, ou por capricho, pois se não tem feijão para comer, churrasco de carne de boi e tortas de chocolate seria uma opção melhor.
Uma Maria Antonieta de caderno e lápis na mão pensaria assim, rabiscaria sentimentos puerís, verdades duvidosas, num diário de intimidades socialmente indecentes. Ele mesmo o reconhece no seu jornal, quando fala da “escassa validade social da literatura de intimidades.”
A diferença entre Ascendino Leite e Callado, Drummond, Barbosa Lima Sobrinho, Montello, Houais e Gullar (que ele abomina até o nome), é que estes patriotas são capazes de se comover com a miséria, a pobreza, e de lutar contra esses males que têm origem na estrutura iníqua da sociedade brasileira.
Os ossos de Mário de Andrade, acre-dito, estalaram no túmulo com os ecos da “san-tificação” de Euclides da Cunha, pretendida por Ascendino, para quem, o Nordeste existe apenas como entidade mítico-literária. Eis o mal apontado pelo criador de Macunaíma: a falsificação, o desvio da conotação puramente socialista de OS SERTÕES, transformado em página de antologia e belas letras. Uma grosseira traição.
Deixo uma recomendação ao leitor eventual (os literatos de profissão sabem como fazê-lo) do famoso livro: comece pela “Nota Pre-liminar” onde ele escreveu: “Aquela campanha lembra um refluxo para o passado. E foi na significação integral da palavra um crime. Denunciemo-lo.” E no final do livro, objurgando comentaristas especiosos, em “Notas do Autor I assevera: “Não tive o intuíto de defender os sertanejos porque este livro não é um livro de defesa; é, infelismente, de ataque.”

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Numa página de Huxley encontrei uma categoria de indivíduos na qual incluo o autor de A VIUVA BRANCA. Trata-se daquelas pessoas que, por circunstâncias favoráveis “de ordem inte-lectual, econômica, psicológica e biográfica... para elas as instituições existem como uma espécie de armação sólida, sobre a qual podem executar quaisquer ginásticas que queiram. A rigidez da sociedade como um todo torna possível, a esses privilegiados, transpor os limites morais e intelectuais sem risco algum. Nenhuma culpa se lhes pode inquinar.” (SEM OLHOS EM GAZA. Grifei).
ARS GRATIA ARTIS.
Não condeno de forma irrecorrível a escrita escapista do mestre Ascendino Leite. O que não aceito é a sua consciente intolerância. A sua compreensão acomodada das tarefas próprias do intelectual, do homem de letras em face do seu povo e do seu país. Da sua literatura, diria melhor.
Atrái-me, entretanto, a sua literatura. A qualidade do estilo, o poder de divagação, a ilu-minação de sua vida interior despertam-me a curiosidade. Encontro-me nele em ocasiões de relaxamento e preguiça, gozo certo prazer. Em suma, um documento exemplar e agradável para o conhecimento de fatos de sua vida, e de fases da vida literária do país, do ponto de vista de um publicista católico, como o classificariam com autoridade.     

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De uma carta de Ezra Pound ao poeta Williams Carlos Williams:
“Eliot, no banco ganha £ 500. Muito cansado para escrever teve uma depressão; durante a convalescença na Suiça escreveu WASTE LAND, uma obra prima; uma das mais importantes 19 páginas de língua inglesa. Voltou ao banco e está de novo em pedaços, fisicamente.”
Certa categoria de intelectuais recusa o seu sepultamento nos escombros da classe média. A sua condição de trabalhador humilha-o, e o oferece no holocausto dos pequeno-burgueses aviltados. Somente a consciência de classe incorpora o homem plenamente à história. Vale para o trabalhador e para o detentor do capital.
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                    Continuo sem uma definição na escritura destas notas. Resta a alegria de colher, ao longo das folhas datilografadas, algo que represente um sentimento verdadeiro, uma preocupação socialmente relevante. Fatos comuns, a superfície dos acontecimentos, deixando de lado a arquitetura típica, contraditória da sociedade, ocupam estas páginas. A dificuldade para a reflexão, para a ação solidária e responsável.

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