quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

PROSA CAÓTICA II, CADERNO 1, 1985/2000

PROSA CAÓTICA II, Caderno 1, 1985/2000
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Apesar do administrador, faz-se necessária a minha palavra final nos negócios da fazenda. Trabalhadores e vizinhos procuram tirar vantagens de minha pouca experiência, e, em comentários maldosos, minar a autoridade do administrador, ou encarregado. Dá para perceber.
Na estante os livros oferecendo-se. Indefinição de objetivos imediatos. A fazenda não é para mim, fator único de alienação. A literatura, igualmente, não é ocupação insubstituível no mundo dos meus compromissos. Letras e números. Entre os valores humanos, inútil aferir-lhes a preeminência. Como na questão das letras e das armas, mutatis mutandis, no Quixote. Uma questão de escolha.
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Encontrei no meio de papéis guardados há muito tempo, alguns contos e o esboço de um romance. Antigos projetos que abandonei ao longo de mais de vinte anos. A atividade política tomava o meu tempo, transformava-se num projeto de vida. Até a advocacia abandonei. Foi um período de leitura de jornais, infindáveis reuniões, presença anunciada em todos os lugares.
Afastado da militância partidária, diminuídos os seus compromissos, pretendo retomar aqueles projetos literários. Tenho dúvidas se escreverei o romance desejado, pois não consigo movimentar os personagens, elaborar a trama com eficiência. Poemas de circunstâncias, curtos e líricos, contos breves, relatos de pequenos dramas, daí não passará a minha literatura, desconfio. E estas anotações, que tomam no momento, grande parte do meu tempo.
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 “Podemos dizer – escreveu Álvaro Lins – que todos os gêneros de poesia se encontram na Bíblia, o que talvez não impressione muito por se tratar de um livro essencialmente poético. Impressiona muito mais a comprovação de que também contém todas as formas de romance. Nas suas páginas e nos seus episódios serão encontrados o romance regionalista, o naturalista, o psicológico, o introspectivo, o ideológico. A Bíblia não é só um grande poema, mas um conjunto de grandes romances.”
Algumas pessoas de destorcida formação religiosa, acreditam que a Bíblia é um livro dirigido para a morte, quando, na verdade o é para a vida também. A existência de povos e de raças, de famílias e de pessoas nos seus dramas coletivos e pessoais, nos seus problemas mais genéricos ou íntimos, demonstra e difunde. Uma lição de vida, portanto. Explica o homem e a sua praxis.
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Releitura de O EU PROFUNDO E OUTROS EUS, de Fernando Pessoa, e de POESIA, de T. S. Eliot, em tradução, introdução e notas de Ivan Junqueira.
Estes poetas não morrerão. Poderão desaparecer por certo tempo, mas, serão redescobertos, reestudados sempre. Aliaram á coincidentes concepções poéticas, uma preocupação com a momentânea realidade, o homem, transitoriamente histórico.
A reescritura de textos que realiza Eliot e a multiplicação de planos e visões estéticas de Pessoa e seus heterônimos, constituem um trabalho de “arqueólogo do espírito” do homem, descobrindo o passado, perlustrando o futuro.
A poesia como ciência da alma.
A emoção. Dorme no cérebro, no fundo da consciência esse poderoso sentimento, até que despertado, caracteriza o fazer humano. A arte é profundamente emocional. A leitura dos versos destes dois poetas transmite-nos esta certeza. Mas, igualmente racional e intencional, se atentarmos para o “vanguardismo” técnico presente nas suas obras.
A arte poética não se esgota na renovação formal.
Fernando Pessoa escreveu: “Um poema é a projeção de uma idéia em palavras através da emoção. A emoção não é a base da poesia: é tão somente o meio de que a idéia se serve para se reduzir á palavras.”
Escritura de Eliot: “The only way of expressing emotion in the form of art is by finding an objective correlative; in other words, a set of projects, a situation, a chain of events which shall be the formula of particular emotion.”
Pessoa fala em “emocionalizar o pensamento”, e Eliot assinala “the intensity of the artistic process.”
O tema oferece-se, para uma análise de aproximação da técnica de construção poética entre esses autores.
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Fui procurado por um morador da fazenda que me pediu trabalho. Eles já não dispõem para comer, de um grão sequer da última colheita. São forçados a comprar caro, nas bodegas, a miserável feira da semana.
– Vou pensar em alguma coisa – disse para confortá-lo, como se a fome pudesse esperar.
Ele baixou a cabeça, aparentemente conformado.
A seca prolongou-se além do previsto. O fornecimento de dinheiro sob forma de adiantamento, no nosso regime de parceria agrícola, depende de invernos regulares, da implantação de roçados para garantia do pagamento.
Criei tarefas eventuais, entre outras, reparo no teto da casa onde moro, para oferecer-lhes oportunidade de ganho, abaixo, contudo, do mínimo legal. É o regime vigente no meio. Apesar de indefensável a minha posição, pago melhor que os demais proprietários vizinhos. Eles já me olham ressentidos e acusam-me de dificultar-lhes o relacionamento com seus trabalhadores. “Ganha fácil do governo. Devia pagar melhor. Nós não temos essa condição.”  Falam ressentidos a meu respeito.

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Os trabalhos na casa começaram pela ala sul por ser mais conveniente pra mim, e mudei-me para o lado norte. Vozes estranhas mudando os meus hábitos. Desconforto. Presenças incômodas.

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O desenvolvimento das ciências e as modernas técnicas estão criando uma nova sociedade. Vivemos um momento de “fratura da história.” A “cartilha” de Stálin, nada tem com a repressão que ele instalou na URSS. Facilita a assimilação de textos de Marx e Engels, capacitando o ativista para o descobrimento das contradições específicas do seu povo e do seu tempo.
Marxista fanático desde a juventude  – acentuam seus biógrafos –, afeito à discussão e à ação política ao lado de Lênin, é também um dos responsáveis pela criação da ética bolchevique, um comportamento que sustentava a imagem do homem e dos costumes dos proletários fundadores do estado soviético.
Melodramático, enérgico e orgulhoso como o retrataram, liderava o partido, chefiava o governo, gostava da companhia de intelectuais e se considerava um deles. Lia e comentava a história, discutia o teatro e o cinema, aprovava a estética do realismo socialista que definia e conceituava: “O artista deve mostrar a vida com veracidade. E se ele mostra nossa vida verdadeira, não pode deixar de mostrá-la avançando para o socialismo. Isso é e será realismo socialista”. Khruchiov o batizou de “o homem de sete faces.” O resultado político, para ele estava em primeiro lugar, como se evidencìou no período ditadura com os processos, as execuções e o terror, censurando e distribuindo edições falsas de jornais.
Parece que os comunistas brasileiros deixaram de lado a leitura dos clássicos, e divulgam novidades européias e norte-americanas de conteúdo revisionista, estimulados por interpretações artificiosas de filósofos de segunda mão.

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Edmund Wilson no seu RUMO À ESTAÇÃO FINLÂNDIA: “Há vários motivos que explicam o reconhecimento insuficiente dado a Marx e Engels como escritores. Sem dúvida, um deles é o fato de que as conclusões a que eles chegaram eram contrárias aos interesses das classes que mais lêem e que fazem as reputações dos escritores. A tendência a boicotar Marx e Engels, que se verifica tanto entre os historiadores literários quanto entre os economistas, constitui uma notável corroboração da teoria marxista da influência da classe sobre a cultura. Porém há outro motivo também. Marx e Engels não acreditavam mais em almejar a glória filosófica ou literária. Acreditavam ter descoberto as alavancas que regulam os processos da sociedade humana, que liberam e canalizam suas forças; e, embora nem Marx nem Engels tivessem talento de orador ou de político, eles tentavam fazer com que suas capacidades intelectuais atuassem o mais diretamente possível na realização de objetivos revolucionários. Estavam tentando fazer que sua prosa se tornasse “funcional”, no sentido em que o termo é empregado em arquitetura, coisa que não ocorrera nem com o jornalismo de Marat nem com a oratória de Danton. Como seus objetivos eram de âmbito internacional, não estavam nem mesmo preocupados com seu lugar na história do pensamento alemão. Assim, Marx escreveu sua resposta a Proudhon em francês; e os escritos de Marx e Engels desse período misturam francês, alemão e inglês, entre artigos de jornal, polêmicas e ma-nifestos que só recentemente foram reunidos pelos russos e publicados na íntegra.”(p. 158)

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