segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

PROSA CAÓTICA II, CADERNO 1, 1985/2000

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Ameno e alegre estava o tempo em pleno inverno. Fiz anotações neste caderno e separei livros para leitura, para consulta. A necessidade do reestudo de idéias antigas, informações perdidas na memória.
Em descuidado relaxamento na rede, os pensamentos buscando fatos agradáveis da minha vida passada, escutei ao longe o alarido. Como bramem no pasto as ovelhas acossadas por cachorros famintos, estrugiram os berros, os latidos, o tropel.
Saí para ver, temendo prejuízos no rebanho. Numa clareira na catinga, os filhos dos moradores brincavam agachados, andavam-de-quatro, imitavam os bichos, mergulhados no capim, numa tropelia costumeira. Uma simulação perfeita, real para os ouvidos.
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Ao sentar-me à máquina para escrever, pergunto-me mais uma vez: “Qual o sentido destas anotações? Serão publicadas, lidas algum dia?”
Não se trata de um diálogo com os livros, de um monólogo entediado. Esforçar-me-ei para que sejam conhecidas, apesar da ausência nelas de exemplaridade. Empenho-me, todavia, em oferecer estas manifestações do meu espírito, como fonte de idéias minhas e de outros, aproveitáveis de algum modo.
Lembro-me de Virgínius da Gama e Melo no seu amor à literatura. Dedicou a sua vida não somente à realização da sua obra de escritor, mas em criar, igualmente, condições para que outros o fizessem.
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A sua concepção da vida e da arte é a de que tudo se realiza num mundo miserável, onde a condição humana periclita, reduz-se a de um “piolho, de um carrapato-chupa-sangue e pardo, errante entre os pêlos da onça.” Esta evidência do seu pessimismo diante da vida, em face do mundo que é re-presentado na figura de uma onça que via desfazer-se “em pó, em cinza, em sarna, o que ainda lhe restava de sua vida demente e sem grandeza”, é revelada por Quaderna que vê os homens como uma raça piolhosa, “raça também sarnenta e sem grandeza, coçando-se idiotamente como um bando de macacos diante da ventania crestadora, enquanto espera a morte, à qual está, de véspera condenada.”
A visão de Quaderna – que outra coisa não é, senão a sua cosmovisão – encerra uma revelação trágica entre todas. É quando ele, ao descrever ao Corregedor a aparição sobrenatural, manifesta dolorosamente a sua decepção pela inferioridade e malignidade do que lhe ocorrera, dizendo: “O pior, porém, é que não se tratava nem de uma Onça digna, uma Onça Malhada como aquela que o Profeta Nazário e Pedro Cego tinham visto.”
O Profeta e o Cego são porta-vozes de toda aquela massa de ignorantes e místicos sertanejos, cujos anseios consistem na busca de um mundo justo e melhor, representado na idéia de riqueza e felicidade. Um mundo virtuoso, portanto, cuja pureza é produzida com instinto plástico espontâneo na bela figura da Onça Malhada, que tem nos olhos pedras preciosas, é fértil, cantadeira, propõe-se a tornar felizes os que nela acreditarem.
A visão de Quaderna é deformada, deformação que o entristece e desespera cada vez mais, ao compreender a decadência inelutável da estrutura que o originou, jogando-o à mercê de um sebastianismo inconsequente e criminoso. Todos os sonhos “monárquicos-de-esquerda”, fruto de um falso conhecimento da realidade, que povoam o mundo do Poeta-Decifrador-Astrólogo, não resistem à imagem rejeitada da Onça sarnenta e piolhenta.
Acredito haver certa identidade entre minha teses e as observações de Rachel de Queiroz sobre A PEDRA DO REINO. Sem maior esforço as localizamos em comentários da romancista cearense, encontrando na narrativa “reclamos de usurpação”, “Suassuna olha para esse mundo com a visão do exilado, ainda na adolescência arrancado ao seu sertão natal.”

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Sobre Virgínius da Gama e Melo.
A literatura histórica, amplamente exercitada na Paraíba a par de uma historiografia inaugurada por José Octávio de Arruda Melo, inspirado em José Honório Rodrigues e outros ensaístas modernos, indicar-nos-ão claramente, no choque entre perrepistas e liberais, e no episódio do assassinato do poeta e vereador Félix Araújo, o peso histórico, a identificação de pessoas, o envolvimento de famílias, a descrição de lugares onde se desenrolam os acontecimentos das narrativas virginianas.
Virgínius realiza a exploração de um passado politico da Paraíba, ele contemporâneo dos fatos, testemunha e/ou participante, pelo en-volvimento de pessoas que lhe eram caras, pelos laços de família. É um esforço doloroso e cruel, uma autoflagelação que ele pratica na construção de seus romances, sem uma palavra de simpatia pelos atos dos líderes na condução da massa ignorante, sem que constitua objetivo da acão desenvolvida, a eliminação da miséria, da pobreza.
A única reflexão de um personagem com traços intelectualizados que ele permite nos seus dois romances, é a de Carlos Agra, em “A Vítima Geral”, um spengleriano na classificação do próprio autor, que denuncia a decadência física e moral dos homens da região “padecendo de fome crônica, subnutridos. E ainda mais esses políticos irresponsáveis numa agitação que só tem finalidade pessoal.”
O mais é a narrativa crua dos acontecimentos, a descrição fiel de personalidades deformadas, para as quais, a conquista do poder representa a sociedade com o erário, o enriquecimento pessoal. Virgínius parece que deseja a condenação póstuma dos oportunistas e dos impostores, e a execração dos remanescentes daquele mundo viciado, ao recriar as fases de crise e de trans-formação da vida política paraibana. São romances em que a trama se de-senvolve sem influência do autor, pelo caráter estereotipado dos personagens, pelo sentido histórico dos fatos.
Entendo que Virgínius conseguiu superar o dilema de Irving Howe, que duvida “da possibilidade de alguém escrever um romance político, que seja realmente romance, isto é, mais imaginativo que um documento, e menos subjetivo que um panfleto.”
Foi esse o Virgínius que eu conheci e me habituei a admirar, capaz de condenar o exercício de todas as tiranias, quando defendia os artistas e pensadores russos “dissidentes”, e ao mesmo tempo tinha a coragem de afirmar diante dos fatos, que os norte-americanos não eram mais os campeões da democracia e da liberdade.
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O meu amor pelos livros em certa época tornou-se meio fetichista. Adorava-os em brochuras ou na riqueza de encadernações. Mas um livro, sempre. Comprava-os, escolhia lugares apropriados na estante para guardá-los, e ficava durante dias a receber estranhos eflúvios do seu conteúdo desconhecido.
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Freqüento em Sousa um bar-restaurante, para jantar, para beber cerveja com amigos, para “curtir música ao vivo”, como dizem. Escuto as canções nas vozes agradáveis dos cantores, a execução primorosa em ins-trumentos musicais modernos dos ritmos em voga. Habituei-me a ouvir música, popular e erudita, desde a juventude, e, atento aos critérios para aferição dos valores musicais específicos, no meu julgamento, os rapazes que integram a banda são ótimos artistas.
“Quem são? Onde moram?” A pergunta ocorre-me como a um velho sousense que sou. Na minha cidade houve um tempo em que algumas famílias, além da riqueza de posses, reservavam para seus filhos a instrução, o cultivo das artes. Caricatura tórrida, certamente, na identificação de Oliveira Viana, acharia que tal virtuosismo só podia ser obra de um Pordeus, ou de um Gadelha do ramo do Maestro Nicodemos. Assim também na política, na alta burocracia, éramos levados a pensar, pois oportunidades não se ofereciam para o “vulgo vil sem nome” de que falava o poeta fidalgo Luiz de Camões.
“Quem são? Onde moram?” Insitia.
Filhos do povo, pude saber depois. Moram em pequenas casas no centro da cidade, classe-média-baixa, ou nos subúrbios, filhos de traba-lhadores. São artístas, trabalham para viver. Nenhum filho, neto ou bisneto daquelas prendadas familias, para as quais, a música era um ornamento, um destaque especial além do nome.
Fico a pensar em quantos talentos murcharam no passado, vítimas da poderosa discriminação. Não conheci o velho Nicodemos. Conheço seu filho, o excelente músico Nicó, exímio em solar todos os instrumentos que compõem uma banda de música. Esse não deixou descendentes músicos. Um sinal dos tempos.
Os ricos começam mesmo a ser tangidos das ruas e praças onde se aglomera o povão, perfeitamente integrado no ruge-ruge das multidões. Uns se afastam ofuscados, outros comandam o ritual da reunião.


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