sábado, 8 de janeiro de 2011

PROSA CAÓTICA II, CADERNO 1, 1985/2000

PROSA CAÓTICA II, Caderno 1 /1985/2000
14
Para livrar-me do desconforto com os trabalhos na casa, viajei para Sousa. A minha cidade de nascimento continua sua intrépida luta contra o atraso. As ruas cheias de gente, muita atividade comercial. As pessoas isolaram-se mais, em grupos de interesses iguais. Assim se cumprimentam, assim ignoram a presença de estranhos.
Automóveis caros, de modelos novos, exibem o triunfo de fortunas recentes, a estabilidade de alguns, a investida aventureira, a alienação de todos. Afastados do centro da cidade os pobres amontoam-se nos subúrbios, e mendigam, exercem um precário comércio ambulante de bugigangas, per-seguidos, corridos pela indiferença dos demais em relação à sua sorte.
Visitei minha mãe doente, imobilizada há anos por uma trombose. Encontro-a todas as vezes que a vejo, o olhar distante, respondendo com monossílabos às minhas indagações carinhosas e apressadas. Às vezes ela faz perguntas. Quer saber dos outros filhos. Fumante inveterada, a doença colheu-a quando ainda administrava com a eficiência que todos lhe reconheciam, a casa, a família. Meu pai falecera três anos antes.
15
Concluídos os serviços na casa. O regime de empreitada, com esforço redobrado dos trabalhadores, possibilitou-lhes uma boa remuneração. Mais um motivo para comentários despeitados. Cuidarei, agora, de organizar a minha pequena estante, os meus papéis, cuja ordem imposta pela empregada, não consigo por enquanto, decifrar.
16
Ontem à noite caiu uma grande chuva. Alegria geral com perspectiva de um bom inverno, para os mais otimistas.
Os passarinhos, há meses quase desaparecidos, voltaram como por encanto. Chego a pensar que o canto dos pássaros não é apenas a forma de comunicação entre os de sua espécie, para o agrupamento, a guerra, a re-produção. Algo existe na modulação das horas próprias, como que uma integração com o mundo circundante, um hino à natureza, à vida.
As vozes dos homens primitivos assim devem ter ressoado no desenvolvimento de sua experiência social, do trabalho, até chegar ao signo, à palavra, que o ajudou a dominar a natureza, na designação de objetos e fenômenos. Daí para a abstração, o degrau que o transformou no ser superior na escala animal.
Os poetas dizem que os rios cantam, que as flores sorriem, e advertem contra as trapaças do tordo e a crueldade do mês de abril... aves e estações inexistentes no clima do semiárido nordestino.
A arte é aquela forma de integração, de apropriação do mundo mediante a consciência, o instinto animal, e refletem, como experiência social, no complexo relacionamento dos indivíduos, na sua especificidade, a dialética dos fenômenos do desenvolvimento social.
Estamos, é verdade, bastante afastados das sonoras modulações dos nossos irmãos passarinhos. Tudo, entretanto, submetido a leis.
17
As lembranças da mais tenra infância, aí pelos quatro a cinco anos, diluiram-se ao longo de uma juventude marcada pela necessidade. Não aquela pobreza enraizada na família, mas a que se sobrepõe ao fracasso de um dos ramos. A primeira humilha, deixa na personalidade a marca da obstinação, da resistência; a segunda revolta; criam bodes expiatórios, transferem res-ponsalidade e fazem os indivíduos maquinadores de vingança sem-razão, dissi-mulados, calculistas.
Na minha casa, para as refeições havia mesas para adultos e para as crianças, tantas eram as pessoas entre hóspedes, visitantes, costureiras e amigos circunstanciais dos meus pais chegados de última hora. O pessoal da arrumação, da cozinha, desdobrava-se.
Ordens rigorosas não permitiam que as crianças se acercassem de onde os adultos conversavam, a não ser quando eram trazidas para serem exibidas como modelos disso ou daquilo. Quantas vezes fui arrancado dos meus brinquedos com outros de minha idade, levado a contragosto para diálogos absurdos, que só me aborreciam!
De minha mãe, lembro-me nessa época, com vestidos limpos e vistosos, o inseparável cigarro, perfumada, a conversar com modistas, mostrando às visitas os inumeráveis álbuns de fotografias da família. Tratava-me com carinho, o seu caçula, e eu procurava o seu colo para os prantos provocados pelos ferimentos e contusões sofridos em brincadeiras, ou beliscões que me aplicavam os irmãos mais velhos quando incomodados por mim.
Meu pai colocava-me nas suas pernas e acariciava-me, beijava-me, e arrancava-me lágrimas esfregando os pêlos duros de sua barba na minha pele delicada.
Quando fui mandado para a escola, comecei a perceber que mudanças ocorreram na nossa vida sem que eu notasse. Tudo estava sendo medido, controlado. Os meus irmãos mais velhos e também as minhas irmãs, devem ter sentido mais dolorosamente o declínio. Rareavam as visitas. Minha mãe conservava a respeitabilidade de sua origem abastada em Mossoró, família de grandes comerciantes, morando em aristocráticos sobrados que conheci muitos anos depois.
A nossa ascendência em linha reta dos “Leite Ferreira” de Piancó, mandados pela Casa da Torre para colonizar aquele pedaço de sertão, mantendo-se pelas posses e prestígio político, desde o Império, com repre-sentantes na vida política do estado, não nos afetava. A mim, pelo menos.
Morávamos em Sousa, onde meu pai dedicava-se a atividades comerciais, e esta cidade como todo o peso de suas potencialidades, na luta entre os potentados locais, ignorando os nossos tios e avós, deputados e doutores, assistiu à queda da nossa fortuna. Todo nosso patrimônio resumiu-se a uma pequena propriedade rural entregue a arrendatários, a casa onde mo-rávamos, e duas outras, vendidas depois para gastos eventuais.
Meu pai, liquidados os seus negócios, entrou para o serviço público estadual, comportando-se com o seu temperamento expansivo e o seu espírito jovial, a mesma pessoa alegre e digna.
Sobrevivemos como os sousenses e com os sousenses, no clube, na política, na igreja, na feira, na escola.
18
Est modus in rebus, sabedoria do velho Horácio.
Com o meu pai aprendi a cercar-me de livros, não para exibir cultura, mas para abrir as portas de outros mundos. Acredito que ele assim procedia, pois não conheço textos de sua lavra. Ficou, todavia, o hábito salutar.
Li muito, sem nenhuma orientação em fases da minha juventude. A literatura começou a me cativar com as páginas descritivas, as historietas infantis dos livros escolares, ainda no curso primário. Surpreendiam-me, que, letras e palavras reunidas pudessem criar paisagens, acontecimentos. Depois vieram os nossos clássicos pré-modernistas: Macedo, Alencar, Castro Alves, Bilac, Euclides, os Azevedo, o romance nordestino entre muitos, que me remetiam para os seus modelos de além-mar.
Numa cidade sem livros, isto é, onde o livro é artigo fora do comércio, circulando apenas as “letras cambiárias”, foi difícil o meu apren-dizado, a minha iniciação literária.
Poesia e prosa de ficção, nacional e estrangeira em tradução, foram as minhas poucas leituras, sem caráter seletivo, debruçado apenas sobre os sentimentos, os dramas, as paixões humanas. O amor e o ódio. A vitória e a derrota. O homem e o seu destino: o seu passado, o seu futuro.
19
Tem chovido regularmente, fato digno de registro nesta região, nos meses de janeiro e fevereiro. Os pequenos proprietários rurais, os trabalhadores desassistidos, mas cheios de confiança em Deus, lançaram no solo as sementes que puderam guardar, ou conseguiram através de compra e empréstimo, precários, nesta circunstância.
A despeito da farta propaganda pelo rádio, as anunciadas “sementes selecionadas para distribuição entre os agricultores” não chegaram nos postos do governo. E como tem acontecido tantas vezes, uma praga de lagartas não controlada, destruiu quase toda plantação.
Esperança é o que resta. Em que não consigo entender. A sobrevivência, a vida em condições subhumanas.
20
Na mesa DA CRÍTICA E DA NOVA CRÍTICA, de Afrânio Coutinho. A miragem dos Estados Unidos da América. Pena que uma inteligência brasileira tenha sofrido tão lamentável cooptação.
Quanto a Nação investiu no seu cabedal de conhecimentos! Valeria a censura? Poderei ser acusado de radical. Ou de mesquinho, o que seria pior. Afinal de contas, argumento em meu favor, o sangue brasileiro e o norte-americano foram derramados na luta contra o nazismo e o fascismo.
Notórias são as ligações do New Criticism com os “temas principais do fascismo”, desenvolvidos abertamente na The American Review, remontando as origens do “movimento” à agitação “ideologicamente conservadora” dos Southern Agrarians, no Sul dos E.U.A. A afirmação é do crítico Keith Cohen no ensaio inserido por Luís Costa Lima no seu TEORIA DA LITERATURA E SUAS FONTES.
Não desprezo, em absoluto, a especialização dentro dos estudos literários. Ninguém o faria. O que não aceito são os caprichosos exercícios de empatia, o rico e curioso jogo de palavras novas na dissimulação de propósitos velhos, deixando de lado a noção basilar de literatura como fato socialmente condicionado.
O aprendizado, ou melhor, a especialização de Afrânio Coutinho nos E.U.A., no campo da crítica literária, submeteu-o de tal maneira a certos modelos daquele país, que o fez esquecer as palavras portuguesas que corres-pondem a expressões usadas por ele como meaning, close analyses, e vai por aí.
Os culturalistas reacionários defendem a tese do desinteresse, da imparcialidade da arte. Através das formas e conteúdos da arte na sua espe-cificidade, eles precisam saber, evidencia-se o processo dialético do desen-volvimento da sociedade. “O interesse social é o conteúdo da arte”. Isso eles querem negar.
Na divulgação de sua tese, AC defende como estéticos os elementos internos da arte literária, valendo por si, independente do meio, da datação histórica, da sociedade que a produziu ou inspirou, como ele queira.
A abordagem da obra literária pelo método intrínseco, preço-nizado por AC, exclui da apreciação a vida, que é o conteúdo da literatura, e retoma a questão Kantiana da “coisa em si”, inteiramente superada do ponto de vista do desenvolvimento da ciência e da filosofia.
21
Leitura no volume VI da HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL, de Otto Maria Carpeaux, de duas páginas sobre Baudelaire:
“Nas vicissitudes póstumas da poesia de Baudelaire é possível acompanhar as deformações, transformações, e transfigurações que a imagem do poeta ‘vase de tristesse, ô grand taciturne’ sofreu nos olhos da posteridade: “do ‘satan d’hôtel garni, un Belzebuth de table d’hôtel, de Brunetiére, até ‘notre Baudelaire’, do católico Fumet.”
“São três imagens diferentes de Baudelaire. Cada uma parece compatível com as duas outras... seria ao mesmo tempo o romântico deses-perado, o boêmio perverso, o pecador arrependido. Baudelaire é em ‘Tableau Parisiens’ o primeiro poeta da grande cidade moderna. Sua teologia do Mal e sua filosofia das ‘correspondences’  entre todas as coisas do Universo são as bases de sua ampliação da poética:  a estética do Feio”.
Registra Carpeaux o caráter precussor na poesia que reflete a obra de Baudelaire, ao nível do que aconteceu no romance e na psicanálise (depois dele) com Zola e Freud. “A poesia de Baudelaire é consciente no máximo grau”, assevera.  Mesmo quando feita para ‘epater le burgeois’.
Nessa leitura, a torturada condição humana é resgatada das sombras. Os versos dos poetas em face do seu mundo burguês, opondo-se a ele, o redimem.
Transcrevi os fragmentos acima, que nos fornecem a paisagem humana e a concepção estética de um poeta e do seu tempo, e também um panorama crítico interpretativo, para compará-lo ao estudo do professor Ramom Jakobson sobre Les Chats, reduzindo à coordernação das proposições da língua, todos aqueles aspectos comentados e que interessam à sociedade e à história.
Vejamos alguns parágrafos do estudo do mestre de Praga:
“O soneto compreende três frases complexas delimitadas por um ponto, a saber: cada um dos dois quartetos e o conjunto dos dois tercetos... as três frases apresentam uma progressão aritmética: 1) um só verbo conjugado (aiment); 2) dois (cherchet, êut pris); 3) três (prennent, sont, etoilent). Por outro lado, cada uma das três frases só tem um único verbo conjugado: 1) qui... sont; 2) s’ils pouvaient; 3) qui semblent.”
“...o sujeito animado não é nunca expresso por um substantivo, mas sim por adjetivos substantivados na primeira linha do soneto (Les amoreux, les savants) e por pronomes pessoais ou relativos nas orações ulteriores... Se, no início do soneto, o sujeito e o objeto participavam igualmente da classe do animado, os dois termos da oração final pertencem à classe do inanimado... Até aqui o poema se nos apareceu formado de sistemas de equivalências que se encaixam uns nos outros, e que oferecem, em seu conjunto, o aspecto de um sistema fechado. Resta-nos abordar em último aspecto, sob o qual o poema aparece como sistema aberto, em progressão dinâmica do começo ao fim.”
Não posso deixar de perguntar: como se sentiriam os autores, vendo assim estudada a sua obra? Acredito que eles indagariam: Qual a significação do trabalho artístico desvinculado do mundo dos fatos sociais? Em que, tal concepção da obra de arte literária (de Jakobson), fixará na história o papel do escritor?
A comunicação tem por objetivo o entendimento, e submeter-se à análise, à compreensão. O estético em literatura restringe-se à comunicação inteligível da experiência humana, à transmissão pelo conteúdo abstrato das palavras, de imagens sensíveis. Não se propõe a obedecer nem criar códigos lingüísticos. Não esqueçamos a lição de Gorski: “a língua é o meio de rea-lização do pensamento.”
O esforço de Roman Jakobson, não auxilia sequer as especulações e estudos gramaticais. Não passa de um mero jogo de palavras, sem importância para o estudo da literatura e da língua na qual o poeta escreveu. Parafraseando Mme. Stael, diria que se trata de um exercício fútil demais para se nivelar à ciência, e complicado demais para o lazer, o divertimento.
Talvez, arauto de novos tempos, com a progressiva invasão da “informática” nos variados campos de atividades do homem, o trabalho jakobsoniano permita computadorizar leituras, e descobrir significações escondidas do perceber humano na obra dos artistas.

Nenhum comentário:

Postar um comentário