sábado, 1 de janeiro de 2011

PROSA CAÓTICA II
(TEXTOS POLÍTICOS E LITERÁRIOS)
O DURO RECOMEÇO
1985/ 2007
(jornal)
Prefácio
CADERNO I

(1985/2000)


1

Trinta e um de dezembro de 1985. Não escolhi a data. O último dia do ano nada tem de marcante na decisão, a não ser a determinação inesperada de colocar o papel na máquina de escrever, e começar. A idéia de um balanço de atividades ocorre de imediato, tão acostumados estamos a esse tipo de comportamento, estimulados pela necessidade de ordenamento de nossas vidas. Talvez uma idéia, um projeto antigo.
Aos cinqüenta e três anos sobrou-me tempo, em parte aproveitado, para saber posicionar-me em face da sociedade, das suas instituições, dos seus preconceitos. Afastei-me da família. Um acontecimento difícil de entender para os amigos.
Homem da cidade passei a viver numa fazenda antiga, situada numa região pobre, de clima instável, castigada ciclicamente pelas secas. Sem a comodidade de que dispunha na capital, moro numa casa de reboco grosseiro e telha-vã, piso áspero de cimento e fogão a lenha que enegrece as paredes e o teto da cozinha. Sem energia elétrica, uma geladeira e lampiões a gás, atendem-me nas horas quentes e para as leituras noturnas.
Não sou exigente quanto à comida, e a empregada, de origem rural, mas criada em casa abastada da cidade, sabe usar a geladeira, mantém limpo o banheiro, assegura água filtrada para bebermos. Conhece o uso adequado de pratos e talheres, a distinção no preparo dos alimentos para as três refeições do dia, enfrenta sem dificuldade a distância dos centros de abastecimento.
Do ponto de vista da minha comodidade material, em face da minha decisão, vivo bem, cuidado respeitosamente por ela, como dona da casa, o que a satisfaz e envaidece. Uma pobre vida, passiva e devotada, como das personagens de Gertrude Stein.
A minha presença e os meus hábitos, em tudo uma novidade por aqui, que todos observam, e intuem explicações nada exemplares.
2
Os rumos de minha vida e a minha determinaçã diferem, em nada imitam à do Jacinto, de Eça, mas, um pouco se assemelham, nas suas constatações, justitificativas e resultado. Do Príncipe da Grã Ventura personagem de A Cidade e as Serras, herdeiro da quinta e casa senhorial de Tormes, no Baixo Douro, de um apartamento no 202 dos Campos Elísios, cultivei, em princípio, a sua equação metafísica “suma ciência x suma potência = suma felicidade”. A melancolia, e algumas vezes o imprevisto, o tédio citadino me levaram a tais conclusões, permitiram o desenlace.
Vale a pena resumir acontecimentos, reflexões e dores que assaltaram o jovem e delicioso personagem que fugiu para Paris: “que criação augusta a da cidade... só o fonógrafo me faz verdadeiramente sentir a minha superioridade de ser pensante que me separa do bicho... agora era por intervenção de uma máquina que abotoava as ceroulas”.  Tempos depois, circunstâncias o levaram a novos raciocínios. [...] A mesmice  – eis o horror das cidades!.. na natureza nunca eu descobriria um contorno feio ou repetido... é por estar nela suprimido o pensamento que lhe está poupado o sofrimento.”  E insiste impetuoso. [...] O seu retorno à vida consciente, entre os vivos, nesta “reconciliação com a natureza. [...] o renunciamento às mentiras da civilização é uma linda história...”
 A imperiosa realidade do instinto, todavia, é que ditara as necessidades. Colheu o herói:
“Mas, caramba, faltam mulheres! [...]  Com efeito era grande e forte a Joaninha...”  e sumamente indicativos, transcreve  “dois versos de uma balada cavalheiresca:
Manda-lhe um servo querido,
Bem hajas dona formosa!
E que lhe entregue um anel
E com um anel uma rosa...
O meu Príncipe já não é o último Jacinto, porque naquele solar que decaíra, correm agora, com soberba vida, uma gorda e vermelha Terezinha... e um Jacintinho.” Pois, tal, aconteceu comigo.
                                                                                            *
A visita semanal da minha segunda e atual família, que passara a morar na cidade, alegrava o meu espírito possuído de envolvente expectativa quanto ao nosso futuro.  Uma tragédia corriqueira quanto ao fato em si.
Em tudo aqui sou diferente dos demais: tenho livros e os leio. Os mais velhos, os proprietários - recorrem ao antigo respeito aos letrados -, insinuam o meu comportamento como uma imitação, que somente o adotavam os tonsurados. Em tempo passado, famílias mantinham em casa professores para os filhos, até padres que cuidavam também da educação religiosa dos agregados.
3
Na estante, entre outros livros trazidos da minha biblioteca na cidade, TEORIA DA LITERATURA, de Wellek e Warren, que ainda não li. Andei folheando o volume, depois de tantos anos de sua publicação, numa quase “leitura dinâmica”, de que se falou muito no passado e na qual não acredito como coisa séria. Mas li trechos, e entendo que necessito de algumas releituras e meditações para conhecer as idéias desses teóricos modernos.
O livro pareceu-me, pela bibliografia que completa o volume, uma espécie de marketing literário, para usar conceito mercantil, no lançamento de produtos no comércio. Reuniram-se os autores numa sociedade de idéias e estudaram os gostos que perduram, tendências novas e variações, dentro destes gostos, excluídos os contrários à manutenção do “mercado consumidor”.
Uma novidade, fruto de muito trabalho, baseado numa vasta cultura, numa exposição ordenada e acadêmica.
Afrânio Coutinho oferece, também, uma extensa bibliografia para o estudo da literatura, útil para uma visão crítica do fenômeno estético-literário. Como em Wellek e Warren, um catálogo, uma lista de convidados.
Torno claro, numa tomada de posição, que entendo “a formação e o desenvolvimento da literatura como parte do processo histórico total da sociedade. A essência e o valor estético das obras literárias, e também sua ação, é parte daquele processo geral e unitário pelo qual o homem se apropria do mundo mediante sua consciência.” (Lukács. Critica).
Alguns intelectuais paraibanos que bebem a ideologia da classe dominante, e curtem os seus porres estruturalistas, numa imprensa subsidiada, numa universidade alienada de bolsistas, mestres e peagadês em regime de confinamento pedagógico e de idéias, torcem o nariz, desdenhosos, quando ouvem falar de Marx, Engels, Nelson Werneck Sodré, Garaudy, Carpeaux e tantos outros estudiosos da literatura, dos fenômenos sociais.
Queiram eles ou não, a literatura, assim como a arte, é um fato, um produto social. A obra literária iguala-se a uma greve de portuários, a uma desordem e quebra-quebra de desempregados, a um mural de Picasso, de Portinari, às gravuras rupestres de Pedra Lavrada e da Pedra do Ingá, na Paraíba e também das cavernas de Altamira, na Espanha, das grutas de Lascaux na comunidade de Montignac na França, entre mais localidades em todos os continentes.
Não foi sem razão, que o autor da monumental HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL, parafraseando Lênin afirmou que “o estruturalismo é o ópio dos intelectuais”.
Que importância poderá alguém, em sã consciência, atribuir aos milhares de palavras gastos pelo professor Roman Jakobson no seu estudo sobre Les Chats, de Charles Beaudelaire, do ponto de vista da literatura?
O mestre de Praga, egresso de Moscou, hoje pontifica em manobras científico-diversionistas nas universidades norte-americanas.
Esse é o objetivo da especialização mesquinha, menor, rica em terminologia, mas determinada por posições sociais retrógradas.
4
Natal e Ano Novo longe da família. Ocorrem-me lembranças que sufoquei no fundo da memória. Prefiro esquecê-las, ou silenciar.
Num tempo mais recuado, do Natal guardo recordações precisas, uma mistura de comemorações burguesas no seio da família, e o perambular triste e solitário em ruas apinhadas de gente. Tempo da infância na casa dos meus pais, e nas ruas do Recife, na juventude, estudante de parcos recursos financeiros,  morando em quarto de pensão.
O nascimento do Salvador, a significação de Sua vinda ao mundo não me despertaram jamais reflexões profundas. Muito cedo me inculcaram a existência de um Papai Noel, a quem eu deveria prestar contas do meu comportamento de menino e a quem me dirigir para receber recompensas. O mais era traduzido em farta comida, pratos raros, canções estrangeiras, frenesi comercial e anedotas. Assim o Ano Novo, sem nada que me induzisse a um inventário de ações.
Sozinho, a cidade distante, recorro à leitura para encher o tempo.
5
Na véspera de Ano Novo tive companhia para o jantar. A empregada estava com a fisionomia carregada. Ela é uma velha amiga da minha família, e lamenta sempre que pode o meu isolamento, o afastamento do lar. Conheceu-nos em dias de grande prestígio social, estimados e festejados. Escolhendo as palavras, temerosa de minha reação, exprobra-me comovidamente a decisão que me jogou nestes ermos.
Moradores da fazenda saborearam comigo a suculenta sopa. Alegres com a carne farta que não consta de suas refeições, criavam ditos. Como são estreitos os horizontes dessas pobres criaturas! Sem dinheiro no bolso, não puderam comparecer à festa anual na cidade.
Descobri que em dias e ocasiões especiais, eles chegam para colher sentenças, informações, que ouvem curiosos. Têm-me na conta de pessoa de grande conhecimento dos fatos do mundo, que troco em miúdos para eles. É de minha experiência fora do mundo onde moram, que esperam explicações para as suas dúvidas.
No alpendre, deitado na minha rede ampla e macia, ora cochilava ora escutava o que diziam. Somente a narrativa de tragédias animava as suas conversas. Acidentes, assassinatos, doenças graves em pessoas conhecidas, davam um colorido especial às frases, às exclamações de espanto.
O rádio anunciava animados réveillons. Indiferentes, eles viviam em outro mundo. Com a execução do Hino Nacional, avisei-lhes que entra-vamos no novo ano, e perguntei-lhes se conheciam a música que o rádio tocava.
Eram três homens de mais vinte e cinco anos, casados, anal-fabetos. Olharam-se com curiosidade e um deles disse que conhecia alguns trechos.
– É aquela que fala na “patamar”– quis explicar.
– Acertou! – exclamei num elogio, e completei. – É o hino nacional do Brasil.
Não adiantava perder tempo em explicações. Eles jamais entenderiam, pois não tinham noção de pátria, nação, estado. Nunca frequentaram escola.
– O índio... prá falar a verdade não conheço – disse outro, com franqueza.

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