sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

PROSA CAÓTICA II, CADERNO 2, 1988/2000

PROSA CAÓTICA II – Caderno 2, 1988/2000

1
Ao nascer do sol, já estou de pé. Deito-me cedo e entrego-me aos pensamentos, sozinho no alpendre. Ventos fortes, pingos de chuva ou o avançado da hora empurram-me para dentro de casa.
Gosto de ficar em silêncio, espreitando o espetáculo da natureza, como se receasse interromper o desenrolar das cenas noturnas.
Gira o universo. Estrelas aparecem e desaparecem no céu. A Via Láctea no infinito encantamento de suas lendas desenha-se num fundo negro, profundo. Relâmpagos iluminam o nascente, ronca o trovão. O gado fica imobilizado esperando a chuva para começar a andar numa forma de resistência e adaptação ao belo e incomparável fenômeno natural da tempestade.
A chuva vem montada no vento, que escouceia, sopra com violência. “O vento é o cavalo da chuva”, ensina a retórica sertaneja.
Ao amanhecer, os pássaros cantam todos de uma vez. Destacam-se as modulações do sabiá, do galo de campina. Vozes harmoniosas no meio do alarido. Luz e sombras. As matas reverdecidas depois da longa letargia da seca.
Avisto trabalhadores vindos de suas casas distantes, dirigindo-se para a jornada nas roças. Homens e mulheres, velhos e crianças, em alegres discussões e desafios. A perspectiva de colheita, a superação das dietas forçadas desanuvia-lhes as feições duras como pedras.
Mesmo sabendo que lhes é negado o produto do seu trabalho, retesam os músculos como condenados, o suor pingando do rosto, fazendo manchas escuras nos sovacos, nas costas.
2
Releitura do que venho escrevendo há alguns dias, sem regularidade. Nada além de simples exercício que me impus, de um gesto filho do ócio. O trivial sem estilo.
Lembro de uma página de Huxley. Anotações de um caderno do intelectual Antony Beavis. A lógica do raciocínio de uma mente poderosa. E eu com os meus pobres escritos, sem leitores, rabiscando para mim mesmo.
É uma longa transcrição, mas vale como exercício de memória e autocrítica.
“Acton quis escrever a História do Homem em termos de uma História da Idéia de Liberdade. Mas não se pode escrever uma História da Idéia de Liberdade, sem ao mesmo tempo, escrever uma História do Fato da Escravização.”
“Nas suas sucessivas tentativas de conceber a Ídéia de liberdade, o homem está constantemente trocando uma forma de escravização por outra.”
“A Escravização primitiva é a escravização ao estômago e à estação adversa. Escravização à natureza, numa palavra. A fuga à natureza se consegue pela organização social e pela invenção técnica. Numa cidade moderna é possível esquecer que existe esta coisa chamada natureza – particularmente a natureza em seus aspectos mais inumanos e hostis. Metade da população da Europa vive no universo forjado por ela mesma.”
“Suprimamos a escravização à natureza e surge imediatamente outra forma de escravização. A escravização às instituições. Instituições ju-rídicas, religiosas, militares, econômicas, educacionais, artísticas e científicas.”
“Toda história moderna é uma História da Idéia de nos libertarmos das Instituições. E é igualmente a História do Fato da Escravização às Instituições. É porque se procura por em prática a Idéia de Liberdade que as Instituições se trans-formam.”
3
Herdei do meu pai o espírito boêmio, dessa boemia livresca com certa dose de álcool. E a tendência ocasional para o isolamento, a introspecção. O dinheiro para mim não tem importância além do que se fizer necessário para despesas indispensáveis e modestas.
A avareza, a usura – um veneno da alma.                                                 
4

1 - ...estrelas vegetais...Pasto espacial de melancólicos bois...(?).  
Thiago de Melo mora em Paris com Simeão Estilita.
 Preferiu a Torre Eiffel às palafitas de Manaus.
2 - Distribuindo sorrisos.
Como o trapezista.
Voando perigosamente sobre o picadeiro.
O falso artista. Assim ganha dinheiro.

        Há pessoas que se realizam no sofrimento, na distância das coisas, dos seres queridos. Descobrem a pobreza do seu mundo desfrutando da riqueza de outros. Um caso para o divã do psicanalista. Ou para o julgamento da história.
5.........
Estas anotações perdem o sentido de um relatório de fatos, como imaginei. Reproduzem no nível de minhas preocupações, o problema capital da vida espiritual da sociedade. Indagação a que Marx respondeu com um axioma: “Não é a consciência do homem que determina a sua existência. É, pelo contrário, a sua experiência social que determina a sua consciência.”
Uma história da idéia...
Antony Beavis percebeu claramente o processo de desenvolvimento, de mudanças quali-tativas que se operam na sociedade. É uma história do real. O motor está na base, na prática determinadora das instituições.
Querer provar o contrário, ou opor particularizações metafísicas, é como aplicar um “raciocínio lógico a uma situação não existente criada por uma idéia fixa ou uma alucinação.”
A literatura nos estudos linguísticos e estruturalistas – um desvario, uma idéia fixa, uma condenação da lógica dialética. Reflexo das situações sociais, ao mesmo tempo que expressão estilística do espírito objetivo, autônomo, assim o mestre Carpeaux vê a literatura.
Forma e conteúdo na sua complementaridade.
As dimensões sintagmáticas e paradigmáticas da literatura, fundadas no conceito de sobredeterminação de certa formação do inconsciente, como o sonho, não passa de piada, de  miragem no direcionamento dos estudos freudianios.
6
Em Sousa, encontro entre os nossos, indecisão para escolha do candidato a prefeito, causada pela prolongada ausência de Antônio Mariz. Preso a compromissos de trabalho na Assembléia Nacional Constituinte, ele pouco tem aparecido.
Esse é o papel do líder. Esperam-no para as decisões que deverão nos levar à vitória, para oferecer-lhe mais uma condecoração.
A submissão a um projeto familiar de realização política, prejudicou a luta socialista de Antônio Mariz. Pai, avô, bisavô, tios, primos, foram governadores, deputados, senadores. Esse traço caseiro, a prosápia, refreou-lhe o ímpeto, desviou a linha de sua ação. Mas entre os paraibanos – é preciso que se diga – pelo seu caráter, pelo exemplo dos seus, permanece admirado pelas qualidades morais no trato da coisa pública. Não vejo, atualmente, entre os políticos paraibanos, outro que pudesse arrancar o Estado do caos administrativo, da frouxidão moral em que o enterraram os últimos governos.
Lembro-me de Ernani Sátyro, reacionário “íntegro”, no seu sonho monárquico de uma casa de reis. O lema do seu governo era con-traditório no enunciado: “tradição e renovação.” Tradição pelo que fizeram os seus antepassados, pelo que ele fazia e pelo que certamente o fariam outros com o seu sobrenome. Enfim, a renovação no seu estilo inarredável.
7
Quando Marshall McLuhan afirmou que “o artista é detentor do poder de ver com clareza e julgar o meio vigente criado pela mais recente tecnologia”, ensinou-nos que, a arte é instrumento e meio eficiente, como reflexo da realidade, para o conhecimento, e que o artista é um descobridor das características e situações típicas da evolução social.
Os artistas são as antenas da raça. Li essa afirmação, acredito, em Ezra Pound, no seu ABC OF READING.
A prática do intercâmbio cultural pode levar-nos à descoberta e identificação da fonte comum entre as manifestações artísticas em todo o mundo, explicando e desvendando “mistérios” que ainda envolvem o homem.
Apesar das características e peculiaridades de cada povo, a soma dos esforços e conquistas do pensamento humano constitue o elo comum, o patrimônio de toda humanidade. A obra filosófica de Karl Marx e as composições de Haendel, alemães pelo nascimento, sugiram na Inglaterra.

8
Em João Pessoa, para onde viajei no início da semana, apelos da minha vida passada. Nada, entretanto que me integre fundo nas preocupações de outras épocas. Encontrei pessoas de antiga convivência, a começar pelos meus filhos e minha ex-mulher. Outras, curiosas sobre a vida que estou levando, procurando envolver-me nas suas pretensões junto à administração estadual, insinuam o meu retorno à capital, numa solicitude ocasional e fingida.
Não sou prisioneiro senão de mim mesmo. Impossível, portanto, a frouxa tentativa de resgate. Estive com o governador (Tarcísio Buriti) e lhe fiz entrega do meu livro A FACE DO TEMPO, que começarei a distribuir com as livrarias e com os amigos, que já se mostravam impacientes e desesperançados com o meu ingresso no mundo das letras – publicar um livro.
A visita foi improvisada. Tive de acompanhar um vereador amigo, para testemunhar reclamações de desprestígio na área de sua atuação. Coisas da velha política que ainda não posso evitar – dever de solidariedade a amigos do passado, que ainda acreditam em influência que não tenho.
Evito sempre que posso, encontros no esquema do governo, para não confundirem a minha presença eventual e forçada, com intenções que não tenho: “ser visto para ser lembrado”.
Notei que o meu comparecimento inesperado à audiência deixou o governador preocupado. Com certeza, receio de um pedido pessoal, ou desejo de uma vingança como do seu estilo. Como deputado, fiz-lhe oposição durante o seu primeiro governo e as feridas, estou certo, ainda não cicatrizaram. Falou-me sem entusiasmo, de um novo projeto de utilização do “Espaço Cultural”, que aplaudi sinceramente. Não sei se o movimento, e se os programas de cultura são modestos para a gigantesca estrutura da Fundação José Lins do Rêgo, ou se a sua direção não tem tido um bom desempenho. O fato é que a extraordinária praça com seus equipamentos, não apresenta um trabalho condizente com as suas potencialidades.
No ônibus, de volta para Sousa, para a fazenda, pensamentos indefinidos. Ocorre-me o verso de Drummond: “No elevador penso na roça / Na roça penso no elevador.”

9
“Ninguém pode abrir sozinho o seu túnel pessoal para a claridade do dia sem o risco de morrer sob os entulhos.”
Esta reflexão de Aníbal Machado, encontrei-a no jornal de Ascendino Leite. Ele se compraz em pensamentos como este, em temores secretos, que o fazer literário revela.

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