ASCENDINO
LEITE – POESIA REUNIDA
(O VAQUEIRO “PRACIANTE”, SEM CAVALO, ESPORAS E GIBÃO)
Ignoro se Ascendino Leite foi ou
não aluno interno em seminário, em convento católico. Caso afirmativo,
explicar-se-ia a sua condição de presa da libido, presente nos seus versos,
numa forma de reação natural, talvez, ao isolamento forçado, à clausura.
Homem de letras, jornalista, Ascendino freqüentou os círculos da
agitada e esnobe vida social e política
do país, os “circuitos” mais afamados da elite no Rio de Janeiro, então capital
do país. E nesses ambientes alegres ou não, a palavra de ordem em qualquer tom
era o prazer, o sexo, com e sem dissimulação. Esta a razão inspiradora dos seus
versos, acredito, que levou o seu prefaciador Ivo Barroso a escrever: “Perpassa
por todo o livro um erotismo sadio... de um ineditismo impossível depois do Kama Sutra.” Por seu turno Hildeberto Barbosa vê a sua poesia reunida
“...como um pequeno tratado dos sentidos, por onde trespassa o desejo
como força regeneradora da vida.” Agrado. De minha parte, sem ofensa pessoal,
mas com o respeito que lhe devo, como parente e escritor, nada melhor para
fazer, nos anos finais de sua vida (depois dos oitenta), do que definir, ser
este, o objeto e destino para sua poética. Um ato de coragem, ou dissimulação
de amores impossíveis, negados. Nada mais lhe resta, ele sabe.
Entristeceu-me, é duro dizer, a leitura da “POESIA REUNIDA” do
paraibano de Conceição de Piancó, a rigor, por lá não encontrá-los: ele, a
cidade, a paisagem e as pessoas, como são. Falo em hábitos, costumes, relevo
geográfico, coletividade, urbanização, genericamente, sobretudo da consciência,
dos ali nascidos e que se fizeram naturalmente: as plantas, os bichos, as
pedras, a água, o sol, a lua, as estrelas e o vento. Sabia-o telúrico,
cangaceiral, encontrei-o, entretanto, reservado, polido, exercendo funções
relevantes, administrativas, cartoriais, como outros conterrâneos, dignos, de tempo mais recuado, e
destaco Nicolau Rodrigues de França Leite e José Siqueira, regendo cátedras e
filarmônicas, admirados e aplaudidos nas Américas, inclusive na Europa.
Essa questão de cultura e erudição, do clássico e do popular, pesa
forte na consciência dos letrados, que, como tal, revelam-se entes sociais cuja
formação os tipifica no proceder, na integração psico-material que os reúne em
coletivida- des como as bactérias e
como as pessoas. Criam escolas, estilos na divulgação dos escritos, no seu
comportamento, como as abelhas, as aranhas, enfim. Sempre um estilo. Literatura
não é régua e compasso, mas espaço e signos ideográficos, lingüísticos,
palavras e fidelidade e sentimento.
Ascendino, leitor compulsivo de
autores nacionais e estrangeiros, tra-dutor, brilhando nas letras brasileiras,
como outros, deixou-se vencer pelo “classicismo” letrado. Os temas, o
sentimento nos seus escritos, podem estar
voltados para o Vale, como denominamos a
região tributária no rio que dá nome à
terra. Algo, todavia, atropela o seu estilo, logo ele, reconhecido entre os
mais inspirados e conscientes escritores do país. Foge para outras paragens. Nos
romances publicados e no seu jornal literário, é um mestre no nível de Osman
Lins, Ivan Bichara, Ernani Sátiro, de Pedro Nava, de Álvaro Lins e outros
notáveis do memorialismo literário nas Américas, na Europa. Não exijo na sua
prosa de ficção, no seu memorialismo, estereótipos sociais, recolhimento e
organização museológica de espécies biológicas, minerais, mas o que nasce de
sua interação. Da paixão e do amor libidinoso ele fala. E da corte, dos salões,
da amizade, da admiração afetiva.
Sei de gente, de pessoas ilustres como ele, também do lugar, tresmalhadas
em territórios estranhos, infensas, entretanto, à pressão colonialista dos
chefes da sociedade que as recebe, como os negros nas Amércas. Está aí Elba
Ramalho, cantora, atriz, noiteira, devota de Nossa Senhora, filha de Conceição.
Uma que outra fugida para o carnaval, para o samba, se permite, ela da linha
melódica do baião, do forró nordestino que ocupa com força e reconhecimento o seu lugar de destaque na música popular brasileira,
encarnando a força do semiárido. Mas até pelo tom da voz todos a identificam: É
do Vale do Piancó, gritam. Cada qual com o seu cada qual, como lá se fala.
Deixemos Ascendino
com sua morada na rua escolhida para abrigar a inspiração, praticar a sua prosa
a sua poesia. Porque a moderna tecnologia que absorve a atenção geral, no fim
torna-se indesejável, não lhe interessa, porque se recria ela própria,
anuncia-se com mudanças inesperadas, instantâneas, sons e ruídos desconhecidos,
confunde ao se mostrar auto-suficiente, vencendo o tempo: o ontem, o hoje, o
amanhã, misteriosamente sabidos e descritos à saciedade. Incompatível com a reflexão fundada em sensações, fatos,
experiências.
Li com muito agrado
páginas do seu “jornal” e nelas deliciei-me com a beleza sonora das frases, a
conclusão filosófica dos raciocínios. Argumentações, um misto de desencanto e
esperança. Não reduzi a somenos a sua poesia, nos comentários acima. Jamais o
faria. Chama-me a atenção, não que ele necessite, porém ilustra o verso e o
torna viajor, as dedicatórias a pessoas, notáveis e simples, sentimentos nem sempre singelos declamados aqui e ali. Certamente o ambiente
de Herbert Sales, Tom Jobim, Waldemar Duarte, Rosilda Cartaxo, do mundo das
artes, e de políticos e empresários, dos conclaves e balancetes, reconheço,
permite-lhe o sucesso de mascate das letras porque atinge o leitor certo, conquista
o leitor privilegiado porque homenageado.
Mas sobre a sua
poesia reunida, com flash-backs e premonições, aduzirei autocrítica que deixei
escrita no meu “PROSA CAÓTICA, II” (inédito): Não sei de obras novas criadas por autores
velhos. Aos organismos vivos, nos limites da vida, a natureza nega até o poder
da reprodução. A
criação na velhice aparece como um filho da juventude, esquecido, talvez
renegado ou escondido. Na velhice assumimos as coisas por adoção. É duro
reconhecer.
Aqui a ocupação da mente. Nada de
abstrações, exercícios literários:
“Despedi os últimos pensamentos e
com eles as mulheres” – Eis que o Vale me enriquece de lembranças”. -----------------------------
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