PROSA CAÓTICA II - O DURO RE COMEÇO)
CADERNO II (1985 /1990)
1 - Ao nascer do sol já estou de pé. Deito-me cedo e
entrego-me aos pensamentos, sozinho no alpendre. Ventos fortes, pingos
de chuva ou o avançado da hora empurram-me para dentro de casa. Gosto de
ficar em silêncio, espreitando o espetáculo da natureza, como se
receasse interromper o desenrolar das cenas noturnas.
Gira
o universo. Estrelas aparecem e desaparecem no céu. A Via Láctea no
infinito encantamento de suas lendas desenha-se num fundo negro,
profundo. Relâmpagos iluminam o nascente, ronca o trovão. O gado fica
imobilizado esperando a chuva para começar a andar numa forma de
resistência e adaptação ao belo e incomparável fenômeno natural da
tempestade.
A chuva vem montada no vento, que escouceia, sopra com violência. “O vento é o cavalo da chuva”, ensina a retórica sertaneja.
Ao amanhecer, os pássaros cantam todos de uma vez. Destacam-se as
modulações do sabiá, do galo de campina, chilrear de vozes harmoniosas
no meio do alarido. Luz e sombras. As matas reverdecidas depois da longa
letargia da seca.
Avisto trabalhadores vindos de suas casas
distantes, dirigindo-se para a jornada nas roças. Homens e mulheres,
velhos e crianças, em alegres discussões e desafios. A perspectiva de
colheita, a superação das dietas forçadas desanuvia-lhes as feições
duras como pedras.
Mesmo sabendo que lhes é negado o produto
integral do seu trabalho, retesam os músculos como condenados, o suor
pingando do rosto, fazendo manchas escuras nos sovacos, nas costas.
2
- Releitura do que venho escrevendo há alguns dias, sem regularidade.
Nada além de simples exercício que me impus, de um gesto filho do ócio.
O trivial sem estilo.
Lembro de uma página de Huxley. Anotações de um caderno do intelectual
Antony Beavis. A lógica do raciocínio de uma mente poderosa. E eu com os
meus pobres escritos, sem leitores, rabiscando para mim mesmo.
É uma longa transcrição, mas vale como exercício de memória e autocrítica.
“Acton quis escrever a História do Homem em termos de uma História da
Idéia de Liberdade. Mas não se pode escrever uma História da Idéia de
Liberdade, sem ao mesmo tempo, escrever uma História do Fato da
Escravização. Nas suas sucessivas tentativas de conceber a Ídéia de
liberdade, o homem está constantemente trocando uma forma de
escravização por outra.”
“A Escravização primitiva é a escravização
ao estômago e à estação adversa. Escravização à natureza, numa palavra. A
fuga à natureza se consegue pela organização social e pela invenção
técnica. Numa cidade moderna é possível esquecer que existe esta coisa
chamada natureza – particularmente a natureza em seus aspectos mais
inumanos e hostis. Metade da população da Europa vive no universo
forjado por ela mesma. Suprimamos a escravização à natureza e surge
imediatamente outra forma de escravização. A escravização às
instituições. Instituições jurídicas, religiosas, militares, econômicas,
educacionais, artísticas e científicas.”
“Toda história moderna é
uma História da Idéia de nos libertarmos das Instituições. E é
igualmente a História do Fato da Escravização às Instituições. É porque
se procura por em prática a Idéia de Liberdade que as Instituições se
transformam.”
3 - Herdei do meu pai o
espírito boêmio, dessa boemia livresca com certa dose de álcool. E a
tendência ocasional para o isolamento, a introspecção. O dinheiro para
mim não tem importância além do que se fizer necessário para despesas
indispensáveis e modestas. Mesmo assim o procuro como instrumento e meio
indispensável de realização de trocas. Mas o que pesa mesmo na vida das
pessoas e ressoam em memórias, reflexões e angústias é a busca pela
própria individualidade no campo e na cidade, a tentativa de compreender
o significdo da morte e o questionamento dos dogmas da religião. É o
que povoa a mente de cada um em transfigurações.
4 - Algo ocupa
insistentemente a minha mente, traz-me à lembrança uma leitura da
juventude nos momentos de sonhos românticos acossados pela antevisão do
futuro. Recebi o livro das mãos de uma pessoa refinada, vestia, com
elegância, os gestos discretos, porém efeminados, o sobrenome da nobreza
europeía, Grimaldi. Refiro-me aos “Cadernos de Malte Laurids Brigge” do
atormentado poeta Rainer Maria Rilke. Ele perorava pretensiosamente em
dúvidas cruéis num retorno a Paris: “11 de setembro, Rue Toullier. É
para cá, então que as pessoas vêm para viver; eu diria, antes, que aqui
se morre. Estive fora. [...] Há um número imenso de pessoas, mas o
número de rostos é muito maior, pois cada uma delas possui vários. Há
pessoas que ostentam um rosto por anos a fio, e, obviamente ele se
gasta, [...] seus filhos devem usá-los. [...] Isso tem, é claro, a sua
tragicidade.[...] não estão acostumados a poupar rostos. [...] Voilà
votre mort, monsieur. As pessoas morrem do jeito que der; morrem a morte
que cabe à doença que têm (pois desde que todas as doenças são
conhecidas, também se sabe que os diferees epílogos letais cabem às
doenças e não às pessoas; e o doente, por assim dizer, não tem nada a
fazer).”
Há os casos de doenças da alma, como a inquietude e a
indecisão sobre escolha de modo de viver e de lugar para viver. E os
enfrentamentos mortais na guerra e nas disputas pessoais. Eis a morte
adrede preparada. E ainda mais cuéis indagações que povoavem a mente do
personagem nas suas indagações mórbidas, nietzcheanas: “É possível que
apesar de invenções e de progressos, apesar da cultura, da religião e
da filosofia, tenhamos ficado na superfície da vida? [...] É possível
que toda história universal tenha sido mal-entendida? [...] É possível
que existam pessoas que digam ´Deus´e pensem que se trata de algo comum a
todos? [,,,] Porem, se tudo isso é possível, se tiver apenas uma
centelha de possibilidade - então, por tudo que há de sagrado neste
mundo, algo tem de acontecer.”
5 - Do meu “diário poético”, que não é diário, mas anotações dispersas:
I- ...estrelas vegetais...
Pasto espacial de melancólicos bois...(?).
Thiago de Melo mora em Paris com Simeão Estilita.
Preferiu a Torre Eiffel às palafitas de Manaus.
II - Distribuindo sorrisos.
Como o trapezista,
Voando perigosamente sobre o picadeiro.
O falso artista. Assim ganha dinheiro.
Há pessoas que se realizam no sofrimento, na distância das
coisas, dos seres queridos. Descobrem a pobreza do seu mundo desfrutando
da riqueza de outros. Um caso para o divã do pcanalista. Ou para o
julgamento da história.
6 - Estas anotações perdem o
sentido de um relatório de fatos, como imaginei. Reproduzem no nível de
minhas preocupações, o problema capital da vida espiritual da sociedade.
Indagação a que Marx respondeu com um axioma: “Não é a consciência do
homem que determina a sua existência. É, pelo contrário, a sua
experiência social que determina a sua consciência.”
Uma história da idéia...
Antony Beavis percebeu claramente o processo de desenvolvimento, de
mudanças qualitativas que se operam na sociedade. É uma história do
real. O motor está na base, na prática determinadora das instituições.
Querer provar o contrário, ou opor particularizações metafísicas, é como
aplicar um “raciocínio lógico a uma situação não existente criada por
uma idéia fixa ou uma alucinação.”
A literatura nos estudos
linguísticos e estruturalistas – um desvario, uma idéia fixa,
elucubrações dolorosas, uma condenação da lógica dialética. Reflexo das
situações sociais, ao mesmo tempo expressão estilística do espírito
objetivo, autônomo, assim o mestre Carpeaux vê a literatura. Forma e
conteúdo na sua complementaridade.
As dimensões sintagmáticas e
paradigmáticas da literatura, fundadas no conceito de sobredeterminação
de certa formação do inconsciente, como o sonho, não passa de piada, de
miragem no direcionamento dos estudos freudianios.
7 - Em Sousa,
encontro entre os nossos, indecisão para escolha do candidato a
prefeito, causada pela prolongada ausência de Antônio Mariz. Preso a
compromissos de trabalho na Assembléia Nacional Constituinte, ele pouco
tem aparecido. Esse é o papel do líder. Esperam-no para as decisões que
deverão nos levar à vitória, para oferecer-lhe mais uma condecoração.
A submissão a um projeto familiar de realização política prejudicou a
luta socialista de Antônio Mariz. Pai, avô, bisavô, tios, primos, foram
governadores, deputados, senadores. Esse traço caseiro, a prosápia,
refreou-lhe o ímpeto, desviou a linha de sua ação. Mas entre os
paraibanos – é preciso que se diga – pelo seu caráter, pelo exemplo dos
seus, permanece admirado pelas qualidades morais no trato da coisa
pública. Não vejo, atualmente, entre os políticos paraibanos, outro que
pudesse arrancar o Estado do caos administrativo, da frouxidão moral em
que o enterraram os últimos governos.
Lembro-me de Ernani Sátyro,
reacionário “íntegro”, no seu sonho monárquico de uma casa de reis. O
lema do seu governo era contraditório no enunciado: “tradição e
renovação.” Tradição pelo que fizeram os seus antepassados, pelo que ele
fazia e pelo que certamente o fariam outros com o seu sobrenome. Enfim,
a renovação no seu estilo inarredável.
8 - Quando Marshall
McLuhan afirmou que “o artista é detentor do poder de ver com clareza e
julgar o meio vigente criado pela mais recente tecnologia”, ensinou-nos
que, a arte é instrumento e meio eficiente, como reflexo da realidade,
para o conhecimento, e que o artista é um descobridor das
características e situações típicas da evolução social. Os artistas são
as antenas da raça. Li essa afirmação, acredito, em Ezra Pound, no seu
ABC OF READING.
A prática do intercâmbio cultural pode levar-nos à
descoberta e identificação da fonte comum entre as manifestações
artísticas em todo o mundo, explicando e desvendando “mistérios” que
ainda envolvem o homem. Apesar das características e peculiaridades de
cada povo, a soma dos esforços e conquistas do pensamento humano
constitue o elo comum, o patrimônio de toda humanidade. A obra
filosófica de Karl Marx e as composições de Haendel, alemães pelo
nascimento, sugiram na Inglaterra.
(CONTINUA)
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