Opinião: A coerência de Saramago
Dono de uma seriedade que muitos confundiam com arrogância, Saramago costumava dizer que, ao contrário do pensamento corrente, não era um intelectual antirreligioso, apenas limitava-se a praticar o seu “discreto” ateísmo. Esse discreto, verdade seja dita, era mais do que uma ironia, era um escândalo, já que muitos dos seus livros, com destaque para O Evangelho Segundo Jesus Cristo, podem ser resumidos como ataques contra as limitações do pensamento cristão.
Seu objetivo não era esculhambar a Igreja Católica, tão forte em Portugal, mas chamar a atenção do mundo para problemas mais urgentes como a fome, a ignorância e a violência. É por isso que, no Evangelho, o Jesus que vemos é um homem como outro qualquer. Ainda que tenha causado a fúria dos conservadores e da teologia oficial, essa é a grande contribuição de Saramago para o debate religioso: humanizar deus (aqui com minúscula) para endeusar o Humano (aqui com maiúscula).
Na arena política, a participação de Saramago não foi menos polêmica. Comunista convicto, nunca abandonou os postulados da esquerda, mesmo depois do sucesso, e os petardos que arremessava contra as injustiças do Capital eram tão desconcertantes quanto a forma com que desconstruía o comodismo do senso comum. Antes que meus queridos blumenauenses fundamentais de direita torçam seus olímpicos narizes, devo acrescentar um dado importante à trajetória do Saramago comedor de criancinhas.
Há alguns anos, diante do fuzilamento de cidadãos cubanos que tentavam fugir da ilha, o escritor imediatamente rompeu com Fidel Castro. “Cuba destruiu os meus sonhos”, ele disse, e assim o fez por ser fiel a seus princípios. Do mesmo modo que não concebia deuses maiores do que homens, também descartava a ideia - tão comum entre a esquerda mais ortodoxa - de que a História seja mais importante do que o Indivíduo. Isso se chama coerência, e esse é o grande legado do mestre português.
maicon.tenfen@santa.com.br
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