quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Saramago


Opinião: A coerência de Saramago

Seria uma redundância escrever sobre a qualidade da obra de José Saramago. Ficará para a posteridade como ficaram Camões, Eça e Pessoa? Eis uma pergunta que só o tempo pode responder. O fato é que Saramago foi consagrado em vida pela crítica, pelo público e pelo mais prestigiado dos prêmios, o Nobel, e isso fez com que suas ideias fossem ouvidas e discutidas em todos os continentes. Portanto, em vez de falar diretamente de seus romances, prefiro falar de sua coerência.

Dono de uma seriedade que muitos confundiam com arrogância, Saramago costumava dizer que, ao contrário do pensamento corrente, não era um intelectual antirreligioso, apenas limitava-se a praticar o seu “discreto” ateísmo. Esse discreto, verdade seja dita, era mais do que uma ironia, era um escândalo, já que muitos dos seus livros, com destaque para O Evangelho Segundo Jesus Cristo, podem ser resumidos como ataques contra as limitações do pensamento cristão.

Seu objetivo não era esculhambar a Igreja Católica, tão forte em Portugal, mas chamar a atenção do mundo para problemas mais urgentes como a fome, a ignorância e a violência. É por isso que, no Evangelho, o Jesus que vemos é um homem como outro qualquer. Ainda que tenha causado a fúria dos conservadores e da teologia oficial, essa é a grande contribuição de Saramago para o debate religioso: humanizar deus (aqui com minúscula) para endeusar o Humano (aqui com maiúscula).

Na arena política, a participação de Saramago não foi menos polêmica. Comunista convicto, nunca abandonou os postulados da esquerda, mesmo depois do sucesso, e os petardos que arremessava contra as injustiças do Capital eram tão desconcertantes quanto a forma com que desconstruía o comodismo do senso comum. Antes que meus queridos blumenauenses fundamentais de direita torçam seus olímpicos narizes, devo acrescentar um dado importante à trajetória do Saramago comedor de criancinhas.

Há alguns anos, diante do fuzilamento de cidadãos cubanos que tentavam fugir da ilha, o escritor imediatamente rompeu com Fidel Castro. “Cuba destruiu os meus sonhos”, ele disse, e assim o fez por ser fiel a seus princípios. Do mesmo modo que não concebia deuses maiores do que homens, também descartava a ideia - tão comum entre a esquerda mais ortodoxa - de que a História seja mais importante do que o Indivíduo. Isso se chama coerência, e esse é o grande legado do mestre português.

maicon.tenfen@santa.com.br

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