sábado, 25 de dezembro de 2010

MEMÓRIA VELHA DO NATAL, REFLEXÕES DO PRESENTE.

A minha primeira lembrança do Natal é bastante recuada e assaz im-precisa. Faltam-lhe detalhes. Nasci em família burguesa − naqueles idos dos anos Trinta do século passado −, que foi alcançada, como tantas, com o passar dos anos, pela indesejável decadência financeira e conseqüente diminuição do prestígio social. Pertencíamos, entretanto, a conhecidos clãs destacados na oligarquia política e de atividades comerciais de caráter oligopolista na região, com grande respeitabilidade e presença no dia a dia de cada lugar, o que nos assegurava e ainda nos permite assento entre os privilegiados. E como tal nos comportamos.
O entusiasmo e agitação verificados nas reuniões familiares, nas come-morações religiosas, cívicas marcavam a conduta da época. Vivíamos o período natalino. Pois bem. Entre os quatro ou cinco anos de idade, como de outras vezes, adormeci depois de uma noite de viva e alegre confraternização que reunira adultos e crianças na minha casa enfeitada de adereços, imagens e cenários trabalhados e oferecidos votivamente ao nascimento de Jesus, ex-postos para a admiração de todos. Relembro das empregadas, de minha mãe e algumas amigas, dias a fio, no afã de escolhas e de composições brilhantes, de arranjos coloridos. Depois, o momento da alegria e satisfação de todos com a farta comida e bebida, no estilo característico e próprio da data.  Meu pai com os seus amigos, sorridentes, chamavam-me para conversas que eu pouco entendia, me acariciavam.
Muitos eram os meninos: irmãos, parentes e amigos, que discutiam o que acontecera, o que acontecia e, aconteceria, naquela inabalável certeza de suas afirmações.  Estava em todas as dependências da casa a efígie do Papai Noel, que nos presentearia com objetos sonhados e valiosos para nós. Pre-tendia vê-lo, mas, pegou-me o sono e adormeci atento às promessas de presentes. Na manhã seguinte, acordado pela minha mãe, ela mostrou-me a embalagem colorida, com laço de fita debaixo da rede: o presente de Papai Noel. Desembrulhei-o, corri para a calçada em frente de casa e outras crianças da vizinhança brincavam, já exibiam os seus. Uma coisa triste, entretanto, apertou o meu coração infantil, tão cedo na minha existência: descobri que alguns não traziam o presente que eu pensava seria dado a todas as crianças. Arredios uns, contrafeitos outros disputavam o manuseio dos objetos preciosos.
[...] “Num tempo ainda presente na memória, do Natal guardo recor-dações precisas, uma mistura de comemorações burguesas no seio da família, e o perambular triste e solitário em ruas apinhadas de gente − tempo da infância na casa dos meus pais, e nas ruas do Recife, na juventude, estudante de parcos recursos financeiros, solitário morando em quarto de pensão”.
“O nascimento do Salvador, a significação de Sua vinda ao mundo não me despertaram jamais reflexões profundas. Muito cedo me inculcaram a crença na existência de um Papai Noel, a quem eu deveria prestar contas do meu comportamento de menino e a quem igualmente me dirigir para receber recompensas. Desapareceu com o passar dos anos. O mais era traduzido em farta comida, pratos raros, canções estrangeiras, frenesi comercial e anedotas. Assim também o Ano Novo, sem nada que me induzisse a um inventário de ações. Sozinho na fazenda, distante a cidade recorro à leituras para encher o tempo”. (PROSA  CAÓTICA II – O DURO RECOMEÇO 1985, inédito).
*
Frei Leonardo Boff disse que Papai Noel existe. O problema do Natal “é aprender a ver com os olhos do coração”, ele afirmou,  e divulgou uma carta-poema:
“Queridos irmãozinhos e irmãzinhas:
Se vocês olhando o presépio e me virem aí, sabendo pelo coração que sou o Deus-criança que não veio para julgar mas para estar, alegre, com todos vocês,
Se vocês conseguirem ver nos outros meninos e meninas, especialmente no mais pobrezinhos, a minha presença neles,
Se vocês conseguirem fazer renascer a criança escondida no seus pais e nos adultoss para que surja nelas o amor a ternura,
Se vocês ao olharem para o presépio perceberem que estou quase nuzinho e lembrarem de tantas crianças igualmente pobres e mal vestidas e sofrerem no fundo do coração por esta situação desumana e desejarem que ela mude de fato,
Se vocês ao verem a vaca, o boi, as ovelhas, os cabritos, os cães, os camelos e o elefante pensarem que o universo inteiro recebe meu amor e minha luz e que todos, estrelas, pedras, árvores, animais e humanos formamos a grande Casa de Deus,
Se vocês olharem para o alto e virem a estrela com sua cauda e recordarem que sempre há uma estrela sobre vocês, acompanho-os, iluminando-os, mostrando-lhes os melhores caminhos,
Então saibam que eu estou chegando de novo e renovando o Natal. Estarei sempre perto de vocês, caminhando com vocês, chorando com vocês e brincando com vocês até aquele dia que só Deus sabe quando estaremos todos juntos na Casa de nosso Pai e de nossa Mãe de bondade para vivermos bem felizes para sempre.
Belém, 25 de dezembro do ano 1.” (Carta Maior, Dezembro 2010)
            Nesta ordem de pensamentos, em face da realidade política que nos é imposta, de modo cruel e impassível, chego à constatação que motivou o protesto do patriota Oduvaldo Vianna Filho[1] que em 1974, antes de falecer denunciava e argumentava: “Reduzir uma sociedade de 100 milhões (hoje 197 milhões) de pessoas a um mercado de 25 milhões, exige um processo cultural muito intenso e muito sofisticado. É preciso embrutecer esta so-ciedade com uma força que só se consegue com refinamento dos meios de publicidade, com um certo paisagismo urbano que disfarça a favela, que esconde as coisas.”
           Tal realidade, produzida por gestores descuidados e/ou cooptados intelecutais então atuantes no cenário cultural, arrancou, mutatis mutandis, o oportuno grito de protesto do filósofo Olavo de Carvalho: “foi preciso que este país decaísse muito para que se pudesse assistir a este triste espetáculo...” [2]
           Aí se esconde a manipulação de idéias e de processos, que envolve acriticamente uma coletividade dominada pela incerteza, mas enfatuada, incapacitada intelectualmente para a reflexão e o julgamento.
           Nos primeiros anos do Século XXI, passadas apenas três décadas da afirmação de Vianninha, a problemática do Brasil não difere historicamente da do capitalismo internacional como modelo de Estado, alega o citado mestre universitário. É apenas um sócio minoritário e dependente do sis-tema central, que desempenha um papel “hegemônico” no processo. (Florestan Fernandes).
     Finalizando estas considerações recorro ao irretocável argu-mento do jornalista Sérgio Halimi através do Financial Times acessível em (http://resenha.com.br/esp2991208.htm): “Se o fim dos regimes policiais na Europa oriental e o desmoronamento dos dogmas referentes à natureza humana que lhes eram atribuídos nos ensinaram alguma coisa, não foi a necessidade de outro totalitarismo e outra tirania – a dos mercados financeiros. Foi o valor da dúvida e a necessidade urgente da dissidência.”
 E as suas reflexões que seguem, aplicadas ao jornalismo e à mídia esclarecem: “Se aceitarmos a legitimação adulatória de uma nova ditadura, a política não será mais do que o palco de um pseudo-debate entre partidos que exageram a dimensão de pequenas diferenças para melhor dissimular a enormidade das submissões e proibições que os unem... Neste mundo globalizado e totalitário, poderemos ainda, os jornalistas e intelectuais, ser o contra-poder, a voz dos sem voz? Reconfortar os que vivem no conforto? Como fazer isso quando, alguns de nós, já pertencem à classe dominante?”
Esta a grande indagação, que podemos ou devemos fazer neste Natal.
.............................Sertão, Natal de 2010

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