domingo, 6 de outubro de 2013

ACADÊMICOS POETAS


Acadêmicos Poetas - continuação
2     -   ASCENDINO LEITE – POESIA REUNIDA (O VAQUEIRO “PRACIANTE”, SEM CAVALO, ESPORAS E GIBÃO).
Ignoro se Ascendino Leite foi ou não aluno interno em seminário, em convento católico. Caso afirmativo, explicar-se-ia a sua condição de presa da libido, presente nos seus versos, numa forma de reação natural, talvez tardia ao isolamento forçado, à clausura.
Homem de letras, jornalista, Ascendino freqüentou os círculos da agitada e esnobe vida social e política, os “circuitos” mais afamados da elite no Rio de Janeiro, então capital do país. E nesses ambientes alegres ou não, a palavra de ordem em qualquer tom era o prazer, o sexo, com e sem dissimulação. Esta a razão inspiradora dos seus versos, acredito, que levou o seu prefaciador Ivo Barroso a escrever: “Perpassa por todo o livro um erotismo sadio... de um ineditismo impossível depois do Kama Sutra.” Por seu turno  Hildeberto Barbosa vê a sua poesia  reunida  “...como um pequeno tratado dos sentidos, por onde trespassa o desejo como força regeneradora da vida.” Agrado. De minha parte, sem ofensa pessoal, mas com o respeito que lhe devo, como parente e escritor, nada melhor para fazer, nos anos finais de sua vida (depois dos oitenta), do que definir, escolher este como  objeto e destino para sua poética. Um ato de coragem, ou dissimulação de amores impossíveis, negados. Nada mais lhe resta, ele sabe.
Entristeceu-me, é duro dizer, a leitura da “POESIA REUNIDA” do paraibano de Conceição de Piancó, por lá não encontrá-los: ele, a cidade, a paisagem e as pessoas, só desenhos ressentidos porque saudosos. Falo em hábitos, costumes, relevo geográfico, coletividade, urbanização, genericamente, sobretudo da consciência, dos ali nascidos e que ali se fizeram naturalmente: as plantas, os bichos, as pedras, a água, o sol, a lua, as estrelas e o vento. Sabia-o telúrico, cangaceiral, encontrei-o, entretanto, reservado, polido, exercendo funções relevantes, administrativas, cartoriais, como outros  conterrâneos, dignos, de tempo mais recuado, e destaco Nicolau Rodrigues de França Leite e José Siqueira, regendo cátedras e filarmônicas, admirados e aplaudidos nas Américas, inclusive na Europa.
Essa questão de cultura e erudição, do clássico e do popular, pesa forte na consciência dos letrados, que, como tal, revelam-se entes sociais cuja formação os tipifica no proceder, na integração psico-material que os reúne em coletividades como as bactérias e como as pessoas. Criam escolas, estilos na divulgação dos escritos, no seu comportamento, como as abelhas, as aranhas, enfim. Sempre um estilo. Literatura não é régua e compasso, mas espaço e signos ideográficos, lingüísticos, palavras e fidelidade e sentimento. 
 Ascendino, leitor compulsivo de autores nacionais e estrangeiros, tradutor, brilhando nas letras brasileiras, como outros, deixou-se vencer pelo “classicismo” letrado. Os temas, o sentimento nos seus escritos, podem estar voltados para o Vale, como denominamos a região tributária no rio que dá nome  à terra. Algo, todavia, atropela o seu estilo, logo ele, reconhecido entre os mais inspirados e conscientes escritores do país. Foge para outras paragens. Nos romances publicados e no seu jornal literário, é um mestre no nível de Osman Lins, Ivan Bichara, Ernani Sátiro, de Pedro Nava, de Álvaro Lins e outros notáveis do memorialismo literário nas Américas, na Europa. Não exijo na sua prosa de ficção, no seu memorialismo, estereótipos sociais, recolhimento e organização museológica de espécies biológicas, minerais, mas o que nasce de sua interação. Da paixão e do amor libidinoso ele fala. E da corte, dos salões, da amizade, da admiração afetiva.  
Sei de gente, de pessoas ilustres como ele, também do lugar, tresmalhadas em territórios estranhos, infensas, entretanto, à pressão colonialista dos chefes da sociedade que as recebe, como os negros nas Amércas. Está aí Elba Ramalho, cantora, atriz, noiteira, devota de Nossa Senhora, filha de Conceição. Uma que outra fugida para o carnaval, para o samba, se permite, ela da linha melódica do baião, do forró nordestino que ocupa com força e reconhecimento o seu lugar de destaque na música popular brasileira, encarnando a força do semiárido. Mas até pelo tom da voz todos a identificam: É do Vale do Piancó, gritam. Cada qual com o seu cada qual, como lá se fala. 
Deixemos Ascendino com sua morada na rua escolhida para abrigar a inspiração, praticar a sua prosa a sua poesia. Porque a moderna tecnologia que absorve a atenção geral, no fim torna-se indesejável, não lhe interessa, porque se recria ela própria, anuncia-se com mudanças inesperadas, instantâneas, sons e ruídos desconhecidos, confunde ao se mostrar auto-suficiente, vencendo o tempo: o ontem, o hoje, o amanhã, misteriosamente sabidos e descritos à saciedade. Incompatível com  a reflexão fundada em sensações, fatos, experiências.
Li com muito agrado páginas do seu “jornal” e nelas deliciei-me com a beleza sonora das frases, a conclusão filosófica dos raciocínios. Argumentações, um misto de desencanto e esperança. Não reduzi a somenos a sua poesia, nos comentários acima. Jamais o faria. Chama-me a atenção, não que ele necessite, porém ilustra o verso e o torna viajor, as dedicatórias a pessoas, notáveis e simples, sentimentos nem sempre singelos  declamados aqui e ali. Certamente o ambiente de Herbert Sales, Tom Jobim, Waldemar Duarte, Rosilda Cartaxo, do mundo das artes, e de políticos e empresários, dos conclaves e balancetes, reconheço, permite-lhe o sucesso de mascate das letras porque atinge o leitor certo, conquista o leitor privilegiado porque homenageado.
Mas sobre a sua poesia reunida, com flash-backs e premonições, aduzirei autocrítica que deixei escrita no meu “PROSA CAÓTICA, II” (inédito): Não sei de obras novas criadas por autores velhos. Aos organismos vivos, nos limites da vida, a natureza nega até o poder da reprodução. A criação na velhice aparece como um filho da juventude, esquecido, talvez renegado ou escondido. Na velhice assumimos as coisas por adoção. É duro reconhecer.
Aqui a ocupação da mente. Nada de abstrações, exercícios literários:
“Despedi os últimos pensamentos e com eles as mulheres” – Eis que o Vale me enriquece de lembranças” escreveu Ascendino Leite.
3     -         SÉRGIO CASTRO PINTO  (correspondência)
Caro poeta Sérgio:
           Causou-me alegria o recebimento do seu livro de poesia “O Cristal dos Verões”  (Escritura Editora, São Paulo 2007).  Retomei o antigo conví­vio com a expressão gráfica do texto  −  para mim característica sua, não do editorador  −  na forma de apresentação do seu acurado pensamento, de sua poesia. Invejo as pessoas assim cuidadosas em se mostrar ao público. Sou meio... ou muito desleixado. Que fazer? Corrijo-me com freqüência, sem muito sucesso.  Guardo lições. Não o fiz por charme, mas me afastei de João Pessoa e de sua vida cultural, que tanto animaram um largo período de minha vida, faz mais de vinte e cinco anos, sem qualquer ressentimento, arrastado unicamente pelo chamado das minhas raízes, em razão do meu nascimento aqui no sertão. Cumpria a firme decisão  de afastar-me, na medida do possível, da militância polí­tica partidária que já não me agradava. 
        Não quero bancar o eremita, menos ainda o troglodita. Algumas vezes estive em João Pessoa, em tratamento de saúde e contatos com Evandro  Nóbrega e o pessoal União,    da UFPB, da Texto Arte, que editaram livros meus.  Ocorreram, entretanto, perí­odos de muita saudade dos amigos que ai deixei, em estirados quatro ou cinco anos sem arrendar o pé daqui. Costume, hábito, a vida melhor para mim, nada mais.
                Agora, sobre o seu livro, o que permanece em mim, depois da releitura de alguns versos, é  a satisfação do convívio ocasional, do  reencontro  secretamente desejado. Perlustro levado por asas invisíveis, um universo inteiro de encantamento e beleza de sensações e sentimentos. A inteligência instigada para ver melhor, para conhecer o coração escondido “atrás do bolso do paletó”. E as  idéias e os sonhos. O seu verso, como um afinadíssimo metrônomo, mostra mesmo que o essencial na poesia é a explosão do momento, lembrando experiências semiográficas, refletindo algumas vezes ondas sonoras, em determinados e extensos textos significantes: perturbações profundas na geologia do planeta-pessoa.  Muito semelha signos até ideogramático de escrita e verbo orientais, sem desdouro de extensões cervantinas.
                Você é, no meu modesto julgamento, um dos grandes entre os maiores poetas paraibanos. Não conheço sua obra completa, inteira em verso e prosa, todavia, o que me chegou, e o que dela falam me satisfazem. Somente alguns versos e comentários amistosos e/ou traumáticos, que o engrandecem, todavia. Certo intelectual acusado de fazer crítica de amigo sobre escritores, replicou: São amigos de verdade. Não tenho maus escritores como amigos.  A sua poesia, direi, é econômica e valiosa na sí­ntese de reflexões profundas. No mundo governado hoje pelo Mercado, foi a melhor metáfora que encontrei para lhe brindar.
                Ave Sérgio! Muito nos conhecemos e pouco nos encontramos, mas calmos, leves ou dissimulados nos procuramos. Tenho certeza. Você arredio, e eu moro longe, afastado, nas dobras das matas e serras do sertão. Não exagero. Sou daqui, gosto daqui, vou morrer aqui.  De amigos distantes, tenho notí­cias me alegro ao recebê-las.
                Voltando à  poesia, hermética ou coloquial tudo é  poesia, falo de  João Cabral, Manoel Bandeira, Ascenço Ferreira. E o que vale, repetirei sempre, é a desconstrução da linguagem seja ordinária, seja erudita. Exemplifico com Leandro Gomes de Barros e Camões. Poesia tem o seu rito, a sua liturgia, porque é expressão do indivíduo, e a reconhecemos no cerimonial da vida, da literatura, insinuante e insinuada na oratória ou na declamação. É impossí­vel evitar: somos tomados de poderoso sentimento de repulsa ou integração, em face da magia aplicada na sua construção. Evitar preconceitos e estereótipos Ah! é a melhor lição para os que soltam versos, que a emoção e o sentimento são próprios de todos os  homens.  Assusta-me de verdade a coerência de Sergio no fazer, a descoberta do sentir como numa programação própria da informática.
               Li alhures: “É patente em Sérgio de Castro Pinto, que é detentor de uma poesia atualíssima, a manutenção de uma poética em progresso desde sua estréia e, feito admirável, com uma marca de inconfundível  respeito e coerência. Com um artesanato meticuloso que prima pela contenção no objetivo incansável de dizer muito com pouco, a exemplo de seus grandes pares, Castro Pinto integra de há muito o elenco dos bons inventores da poesia de língua portuguesa do século XX.” (Peço desculpas ao autor de tão excelente e representativo texto sobre o poeta, por ter perdido o seu nome, mas Sergio me lembrará porque tal dito não esquece o autor objeto da observação crítica. Parabéns)

Cumprimentos e abraço do amigo e admirador
Eilzo Matos

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