SERTÃO,
GUIMARÃES ROSA E ARIANO SUASSUNA
Estava
no alpendre, o telefone chamou e atendi contrariado, porque me deleitava
olhando para o nascente com o “céu carregado” de nuvens sombrosas, escutava o
ronco do trovão trazendo a chuva, que já vinha perto. Como no mês de janeiro. Uma
alegria, uma esperança. O ano passado, esclareço, foi seco, pouca chuva, quase
nenhum relâmpago e trovão, e já neste fim de abril corrente, a situação é a
mesma, o rebanho no cocho pelo segundo ano, sendo recomprado com o custo da
ração. O aborrecimento, todavia, desapareceu: era o amigo Gonzaga Rodrigues. Informou
sobre a solenidade regimental da Academia Paraibana de Letras, em memória do imortal
sousense Paulo Gadelha, falecido há um mês. Fez consultas sobre Paulo e sua
vida, para o discurso que fará na homenagem.
Chegou
enfim o temporal, confirmando “sinais” que eu entrevira durante o dia, e
comentário que escutei depois, sobre a chuva da tarde. Pela manhã comparecera a
uma cerimônia religiosa católica, para o sepul-tamento de duas idosas senhoras
sertanejas, de famílias amigas, da minha vizinhança. “Dona Leó e dona Raimunda
eram caridosas, e deram muita água aos que passavam com sede na sua porta. A
chuva paga o mereci-mento de sua caridade”, alguém observou. Era a crença local
na relação entre a chuva e os atos das pessoas.
Os
costumes e hábitos, os adquirimos na infância, verdadeiros, ines-quecíveis,
viram lembranças. Aqui, principalmente em relação ao inverno. Para qualquer
palavra referente a negócios, nós sertanejos costumamos olhar para o céu, para
o Nascente. Não faço charme, o sertão é o meu lugar. Nasci no sertão, me criei
no sertão, pouco saí do sertão e moro no sertão. Aliás, a vida, o ambiente, em
qualquer local, é entremeado de situações sertanejas, digo, que lembram o
sertão, na fala, nos detalhes ambientais, decorativos. E nos encanta e alegra,
porque o sertão está em todo lugar: esta afirmação tirei-a de leituras, de
citações patrioteiras, legítimas de Gui-marães Rosa. Por sinal, tratando ainda
de escritor famoso, escutei o sertanejo Ariano Suassuna, em recente palestra na
cidade de Sousa, investir contra a entonação, a pronúncia das palavras, das
frases com acento malandro de carioca, preciosismo de paulistas submetidos a
múltiplas influências na construção de sua identidade, nascida da memória
alheia, de imigrantes de Asia, Europa, África, Américas. Diferente de nós ibéricos-nordestinos,
que primeiro descobrimos o Brasil, criamos uma língua brasi-leira. É a dita
pelo poeta “flor do Lácio inculta e bela”.
Tal
felonia acontece com muitos imigrantes nordestinos, numa rendição servil aos
costumes dos que mandam na sua vida. Existe, pois, uma linguagem, um falar,
próprios dos habitantes da nossa pátria nor-destina. O que vale para mim,
portanto, é a memória, e a minha está na infância. E a minha infância é
paraibana, sertaneja, do semi-árido. Sobre o modo de falar, conheço pessoas da
catinga que, passando um mês no Sul voltam chiando nos “s”, cantando e escorregando
feito passarinho; sei de gente nascida e criada aqui em Sousa, formada na
capital, político de mandatos, que fala como os pernambucanos sem nunca ter morado
lá: “impertxinentxi”, “osx doisx, tresx. Herança batava, dele? Poderia. Nossa,
não. O meu vaqueiro Raimundo de Elias, anos atrás passou um mês em São Paulo,
voltou de óculos escuros, com fitas de baiano no punho, trouxe relógio,
gravador, uma raridade naquele tempo, chiava nos “s”, exclamava caramba!
caralho! a qualquer pretexto. Com algum tempo retornou ao que era. De minha
parte, posso dizer que morei doze anos no Recife, viajei pelo Sul e não aprendi
a falar como os de lá: difícil para mim, enrola a língua, range os dentes.
Escritores
e artistas nordestinos ditaram: a pátria é a infância. Luis Jardim, Santa Rosa,
os que lembro. Teve um francês que escreveu: “La patrie c´est l´enfance retrouvée”. Tal como os nossos. Todas
as pessoas têm a sua pátria porque lá nasceram, viveram a infância e não a
esquecem. Me envergonha o procedimento de conterrâneos que negam a origem, co-mo
argumentei no parágrafo anterior. Li um texto esclarecedor do poeta e polemista
Bruno Tolentino, acentuando que as mudanças no tempo e na vida não apagam as
lembranças dos fatos, para ele, testemunhas da ci-vilização. Para nós dos
tropeiros e boiadeiros. Identificamos o autor de “Verdes mares bravios de minha
terra natal”, “Deus ó Deus onde estás que não respondes?” José Alencar e Castro
Alves, o que soubemos na escola, nas conversas, nas referências de conspícuos
improvisadores, cantadores de viola. Escreviam, falavam, descreviam o seu lugar.
Importante a leitura do texto a seguir: “Elevar um discurso para fora do
alcance do poder letal do tempo significa, justamente, temporalizar ao mais
alto grau as coisas e as linguagens da mente... Estou dizendo que o poeta
máximo é aquele cujo dizer, fundado nas coisas deste mundo, num presente
vivido, tende de modo natural àquelas alturas do pensamento a que convergem o
universal, os mistérios da sensibilidade de um poeta e as sutilezas de seu
idioma. A partir de então este pode “mudar” o quanto seja – e nosso léxico preferencial
e até nossa sintaxe mudaram muito desde a composição de “Vozes d’África” (e
acrescento “Iracema”) – mas não lhe será mais possível furtar nada ao impacto
emotivo-verbal que a um dado ponto na história nele encarnou-se perfeitamente”.
Em nós, a prosódia, os hábitos e os costumes.
.............. Fazenda Lagoa de Baixo, abril 2013.
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