terça-feira, 31 de dezembro de 2013




O DURO RECOMEÇO 1985/2007. CADERNO I
1 Trinta e um de dezembro de 1987. Não escolhi a data. O último dia do ano nada tem de marcante na decisão, a não ser a determinação inesperada de colocar o papel na máquina de escrever, e começar. A idéia de um balanço de atividades ocorre de imediato, tão acostumados estamos a esse tipo de comportamento, estimulados pela necessidade de ordenamento de nossas vidas. Aos cinqüenta e três anos sobrou-me tempo, em parte aproveitado, para saber posicionar-me em face da sociedade, das suas instituições, dos seus preconceitos. Homem da cidade passei a viver numa fazenda antiga, situada numa região pobre, de clima instável, castigada ciclicamente pelas secas. Sem a comodidade de que dispunha na capital, moro numa casa de reboco grosseiro e telha-vã, piso áspero de cimento e fogão a lenha que enegrece as paredes e o teto da cozinha. Sem energia elétrica, uma geladeira e lampiões a gás atendem-me nas horas quentes e para as leituras noturnas. Não sou exigente quanto a comida, e a empregada, de origem rural, mas criada em casa abastada da cidade, sabe usar a geladeira, mantém limpo o banheiro, assegura água filtrada para bebermos. Conhece o uso adequado de pratos e talheres, a distinção no preparo dos alimentos para as três refeições do dia, enfrenta sem dificuldade a distância dos centros de abastecimento. Do ponto de vista da minha comodidade material, em face da minha decisão, vivo bem, cuidado respeitosamente por ela, como dona da casa, o que a satisfaz e envaidece. Uma pobre vida, passiva e devotada, como das personagens de Gertrude Stein.
2 Os rumos paradoxais da minha vida, a minha determinação, em nada imitam à do Jacinto, de Eça, mas, um pouco se assemelha, nas suas constatações e resultados. Do Príncipe da Grã Ventura personagem de A Cidade e as Serras, herdeiro da quinta e casa senhorial de Tormes, no Baixo Douro e de um apartamento no 202 dos Campos Elísios (cultivei, em princípio, a sua equação metafísica: “suma ciência x suma potência = suma felicidade”); a melancolia, o tédio citadino). Vale a pena resumir acontecimentos, reflexões e dores que nos assaltaram: “que criação augusta a da cidade... só o fonógrafo me faz verda-deiramente sentir a minha superioridade de ser pensante que me separa do bicho... agora era por intervenção de uma máquina que abotoava as ceroulas. [...] A mesmice – eis o horror das cidades!... na natureza nunca eu descobriria um contorno feio ou repetido... é por estar nela suprimido o pensamento que lhe está poupado o sofrimento.”  O seu (nosso) retorno à vida consciente, entre os vivos, nesta “reconciliação com a natureza..”. e o “renunciamento às men-tiras da civilização é uma linda história... Mas, caramba, faltam mulheres! [...]  Com efeito era grande e forte a Joaninha...”  e sumamente indicativos  os “dois versos de uma balada cavalheiresca:  Manda–lhe um servo querido,/ Bem hajas dona formosa! E que lhe entregue um anel, E com um anel uma rosa... O meu Príncipe já não é o último Jacinto, porque naquele solar que decaíra, correm agora, com soberba vida, uma gorda e vermelha Terezinha... e um Jacintinho.” Tudo na científica constatação da existência da natureza, dos seres vivos, de sua reunião em coletividades e  comunidades  como as  bac-térias o fazem desde que o mundo é mundo.
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