O
DURO RECOMEÇO 1985/2007. CADERNO I
1 Trinta e um de dezembro de 1987. Não escolhi
a data. O último dia do ano nada tem de marcante na decisão, a não ser a
determinação inesperada de colocar o papel na máquina de escrever, e começar. A
idéia de um balanço de atividades ocorre de imediato, tão acostumados estamos a
esse tipo de comportamento, estimulados pela necessidade de ordenamento de
nossas vidas. Aos cinqüenta e três anos sobrou-me tempo, em parte aproveitado,
para saber posicionar-me em face da sociedade, das suas instituições, dos seus preconceitos.
Homem da cidade passei a viver numa fazenda antiga, situada numa região pobre,
de clima instável, castigada ciclicamente pelas secas. Sem a comodidade de que
dispunha na capital, moro numa casa de reboco grosseiro e telha-vã, piso áspero
de cimento e fogão a lenha que enegrece as paredes e o teto da cozinha. Sem
energia elétrica, uma geladeira e lampiões a gás atendem-me nas horas quentes e
para as leituras noturnas. Não sou exigente quanto a comida, e a empregada, de
origem rural, mas criada em casa abastada da cidade, sabe usar a geladeira,
mantém limpo o banheiro, assegura água filtrada para bebermos. Conhece o uso
adequado de pratos e talheres, a distinção no preparo dos alimentos para as
três refeições do dia, enfrenta sem dificuldade a distância dos centros de
abastecimento. Do ponto de vista da minha comodidade material, em face da minha
decisão, vivo bem, cuidado respeitosamente por ela, como dona da casa, o que a
satisfaz e envaidece. Uma pobre vida, passiva e devotada, como das personagens
de Gertrude Stein.
2 Os rumos paradoxais da minha vida, a minha
determinação, em nada imitam à do Jacinto, de Eça, mas, um pouco se assemelha,
nas suas constatações e resultados. Do Príncipe da Grã Ventura personagem
de A
Cidade e as Serras, herdeiro
da quinta e casa senhorial de Tormes, no Baixo Douro e de um apartamento no 202
dos Campos Elísios (cultivei, em princípio, a sua equação metafísica: “suma
ciência x suma potência = suma
felicidade”); a melancolia, o tédio citadino). Vale a pena resumir acontecimentos,
reflexões e dores que nos assaltaram: “que criação augusta a da cidade... só o
fonógrafo me faz verda-deiramente sentir a minha superioridade de ser pensante
que me separa do bicho... agora era por intervenção de uma máquina que abotoava
as ceroulas. [...] A mesmice – eis o
horror das cidades!... na natureza nunca eu descobriria um contorno feio ou
repetido... é por estar nela suprimido o pensamento que lhe está poupado o
sofrimento.” O seu (nosso) retorno à
vida consciente, entre os vivos, nesta “reconciliação com a natureza..”. e o
“renunciamento às men-tiras da civilização é uma linda história... Mas,
caramba, faltam mulheres! [...] Com
efeito era grande e forte a Joaninha...”
e sumamente indicativos os “dois
versos de uma balada cavalheiresca: Manda–lhe um servo querido,/ Bem hajas dona formosa! E que lhe entregue um anel, E com um anel uma rosa... O meu Príncipe já não é o último Jacinto, porque
naquele solar que decaíra, correm agora, com soberba vida, uma gorda e vermelha
Terezinha... e um Jacintinho.” Tudo na científica constatação da existência da
natureza, dos seres vivos, de sua reunião em coletividades e comunidades
como as bac-térias o fazem desde
que o mundo é mundo.
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